Olhe, venho cá à consulta porque vivo sozinha e não tenho ninguém com quem conversar.
O senhor, ao menos, escuta-me, ouve o que lhe digo e ainda me responde e dá conselhos.
O filho do meu defunto marido - o terceiro, porque do primeiro divorciei-me, do segundo enviuvei, tal como deste último - não quer saber de mim. E no meio disto tudo não fiz ou não me souberam fazer filhos. Estou só!
Já não havia muito amor, mas havia companhia, sempre falávamos, tínhamos a presença um do outro, ele ajudava na casa, ia à rua às compras, à farmácia.
Agora estou só! Vivo na aflição de me acontecer alguma coisa de noite, de cair, ficar imobilizada, meu Deus! um desassossego constante.
Quem me vale é a vizinha da frente, que passa lá todos os dias, tenho o telefone dela para uma precisão, mas não é família, nem amiga, é só vizinha. Boa vizinha diga-se, mas coitada, o marido uma desgraça, um bêbedo, dá-lhe pancada, maus tratos, mas ela nem quer ouvir falar em sair de casa ou chamar a polícia. Ele matava-a!
Mas peste é o filho dos vizinhos do 3.º esquerdo, um drogado, rouba os pais para a droga, um homem de 35 anos, devia andar a trabalhar, largou a mulher, o filho com seis anos. Droga-se nas escadas, as injecções, a latinha, o isqueiro, o limão, um cheiro que sobe. Uma vergonhice. Os pais, coitados, se não colaboram levam porrada, desculpe a expressão mas é assim mesmo. Também não adianta chamar a polícia: vai para a esquadra, e a mãe vai lá, retira a queixa e ele volta ao mesmo.
Depois são os vizinhos do rez do chão, ambos desempregados, com o filhito de colo, magro, todo sujo, vão às sopas aos Anjos, e trazem roupa do Centro de Abrigo e sabe, casa onde não há pão... , e todas as noites a televisão aos berros a abafar os gritos e o miúdo a chorar, às vezes já nem chora... só vage!
Acho que já passei da minha hora, o doutor é um santo aqui a ouvir as lamurices de uma velha.
Nem precisa de me auscultar.
Estou bem, só a minha solidão é que não.
Já agora importa-se de me passar as receitas que devo na farmácia? ...são só estes quinze remédios!
2 comentários:
Pois é, há muito sofrimento na vida. Mas também há muita alegria, cor e felicidade!
Tantos desencontros e desafectos...
Há que ouvi-los,e reflectir na nossa capacidade tanto de construir, como destruir,em segundos.
Como disse Caetano Veloso... porque és o avesso, do avesso, do avesso, do avesso...
Beatriz Morcego
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