Cruzei-me com ele na rua.
Lá andava, avenida abaixo, avenida a cima, com um chapéu de palha - que isto do sol inclemente assa o cérebro de qualquer um - a tapar-lhe a calvíce abundante, uma camisa vermelha desbotada e uns calções curtos, de ganga, talvez uns jeans apropriadamente cortados a meio da coxa.
A falar só, em voz alta, para que todos ouvissem: que a vida está má, que os culpados são os políticos, que o sócrates e o cavaco são os responsáveis, que os ricos são muitos e os pobres muito mais.
E lá andava, avenida acima, avenida a baixo, nesta ladainha queixosa, repetida, como o homem dos anúncios falados.
As pessoas olhavam, uns não expressavam opinião, outros a dar-lhe razão.
Falava só.
Mas falava certo!
1 comentário:
"Ontem o pregador de verdades dêle
falou outra vez comigo.
Falou do sofrimento das classes que trabalham
( não do das pessoas que sofrem, que é afinal quem sofre).
Falou da injustiça de uns terem dinheiro,
E de outros terem fome, que não sei se é fome de comer,
Ou da sobremesa alheia.
Falou de tudo quanto pudesse fazê-lo zangar-se.
Que feliz deve ser quem pode pensar na infelicidade dos outros!
Que estúpido se não sabe que a infelicidade dos outros é deles,
e não se cura de fora,
porque sofrer não é ter falta de tinta
ou o caixote não ter aros de ferro!
Haver injustiça é como haver morte.
Eu não daria um passo para alterar
aquilo a que chamam a injustiça do mundo.
mil passos que desse para isso
eram só mil passos.
Aceito a injustiça como aceito uma pedra não ser redonda.
e um sobreiro não ter nascido pinheiro ou carvalho.
cortei a laranja em duas, e as duas partes não podiam ficar iguais
para qual fui injusto - eu?, que vou comer a ambas?
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