sexta-feira, 5 de março de 2010

ESCULPIR VIDAS


Desta vez tinham-lhe encomendado uma cabeça de cavalo.
Diante dele, um bloco disforme de um mármore branco mesclado, aqui e ali, de rosa e de negro. Ele gostava sempre de trabalhar ao ar livre e, nesse dia, uma neblina mais cerrada amaciava as sombras e humedecia, ainda que ligeiramente, a superfície da pedra. A prudência aconselhava o uso de óculos protectores e costumava resguardar as mãos com umas luvas de pele fina de modo a que pudesse sentir, pelo tacto, a superfície da pedra que iria talhar. Pegou no martelo e no escopro e pôs-se a dilacerar aquele pedaço duro de pedra de uma forma violenta mas orientada. As lascas saltavam do mármore a cada golpe do martelo e iam deixando descobrir aquilo que o artista via no seu interior. A pouco e pouco iam emergindo uma orelha, depois um pedaço de crina, as narinas abriam-se ao rodar rápido do escopro e os olhos iam ganhando vida à medida que os bateres na pedra se iam suavizando. Foram semanas de um trabalho feito a um ritmo desordenado, mas persistente. A pouco e pouco a cabeça foi ganhando personalidade e, nesse correr do tempo, o toque na pedra passou a fazer-se de forma mais branda, mais subtil, quase como um afago, um aconchego.
A obra estava, já, perto do fim. Nesse dia tinha trabalhado quase oito horas seguidas a acertar pormenores, a alisar as poucas asperezas que ainda sentia com o passar dos dedos, a pentear a crina longa e farta que cobria grande parte do pescoço forte de onde emergiam veias bem salientes. E começou a criar um afecto, quase paternal, pela sua obra.
Já tinha esculpido muitas cabeças de cavalo, todas encomendadas, todas vendidas. Mas esta decidiu guardá-la para si, criando um local especial no pequeno museu das suas peças.
Com todos os cuidados transportou a obra terminada para aquela sala acolhedora e bem iluminada, colocando-a no topo de um pedestal de mármore preto.
Era uma obra perfeita, quase real, imaginava-se o respirar por aquelas narinas bem abertas e os olhos, matizados suavemente de rosa e negro, davam a ideia de que viam o que se passava ao seu redor. Ficou horas esquecido a contemplar a sua obra, tocando-a docemente e afagando-a como se tivesse vida.
Quando ia a sair, no momento em que fechava a porta ouviu um breve relincho e, ao voltar-se, ainda teve tempo de ver aquele olhar cheio de vida dar-lhe uma piscadela de agradecimento.

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