sábado, 12 de novembro de 2011

FALAR SOZINHO

Deu-se conta a falar sozinho. A falar como se fosse um diálogo entre duas pessoas que, afinal, era uma só. 

Ia no carro quando começou o "diálogo monologado": imaginou-se acompanhado, com alguém a seu lado, e com quem ia falando. A pessoa não interessava, se era homem ou mulher, a verdade é que começou a falar do movimento na estrada, da ultrapassagem, quase no limite, que tinha feito ainda há pouco, do susto porque passou, quando o outro lhe apareceu de frente.

O outro tinha aparecido, assim, de repente, à saída da curva, em boa velocidade, e tinha ido para a sua faixa de rodagem. Não fora o sangue frio, o carro seguro, os pneus com bom piso...

"Viste aquele tipo?"... e não esperou por resposta... "devem vir com os copos, em carros que não sabem guiar..."

E, da condução, passou para o tempo, para a chuva e vento fortes que o acompanhavam naquela viagem, depois, porque as notícias falavam do orçamento de estado, o diálogo passou para os problemas da economia, do que se gasta por aí escusadamente, do dinheiro que nunca chega ao fim do mês, dos ordenados a pagar ao pessoal e, quando deu por ele já estava a falar do trabalho que ainda tinha que fazer, agora, neste outono feito inverno, com as constipações, as gripes, as infecções, as tosses que não param... depois o tema foi o Natal, quase a chegar, o presépio para fazer, a árvore de Natal para decorar, as poucas prendas a comprar, agora que o dinheiro é mais curto, só mesmo para os mais novos, mais os projectos para o próximo ano...

E sempre que falava, ou perguntava para si, ficava à espera da resposta silenciosa do outro lado como se, na realidade, fosse um verdadeiro diálogo, uma conversa a dois mas feita só por um.

Até que chegou à cidade. Agora já podia prescindir da companhia que, a seu lado, não existira, seria só mais um pouco, só mais um instante e estaria a procurar o seu local de estacionamento no parque subterrâneo, e logo, logo, estaria no seu gabinete, para ir ver mais um doente. Mas não, ficou parado no trânsito, no meio de um engarrafamento enorme e, por isso, resolveu não mandar embora a "companhia" e, mais uma vez, começou a comentar com o seu parceiro imaginado, desta vez sobre os engarrafamentos, sobre o pára-arranca que desespera qualquer um, sobre as buzinadelas que descarregavam o desespero dos condutores, mas que não faziam andar os carros, sobre a greve dos transportes que trouxe mais carros para a cidade, sobre o viver, por vezes caótico, nas cidades...

Depois de tanto diálogo monologado até quase estranhou, quando o doente se sentou diante de si, o ouvir de uma resposta à pergunta que lhe tinha feito! 



3 comentários:

Anónimo disse...

Às vezes, acho que os diálogos monologados são os mais razoáveis...
Beijinhos
Berta

Carlota Pires Dacosta disse...

E quantas vezes estamos acompanhados e só nos ouvimos a nós??

beijo

MJ FALCÃO disse...

Bem interessante esta "comunhão" entre o médico sempre e o criador de histórias...
Tão verdade essa de falarmos sozinhos.
Há muito que dei por mim não a falar sozinha (isso, não, acho que não) mas a falar "comigo". Penso que somos bons interlocutores para nós próprios não é?
Pergunto, respondo, ralho... Tudo!