sexta-feira, 24 de dezembro de 2010

O PRÉMIO

Dormira mal aquela noite, aliás, já havia muito tempo que não dormia com sossego. Eram fantasmas de mais: a casa para pagar, as contas da electricidade que, agora com o frio, aumentaram significativamente, o gás, o passe dos transportes que sofreram um aumento inesperado, os pais velhos e doentes sem ninguém, a não ser ela, para os ajudar, as preocupações do emprego, sempre na angústia do encerramento da empresa, o filho longe e que já não dava notícias há muito tempo, tudo a tirar-lhe o sono, a dar-lhe insónias, a torná-la mais triste e deprimida.

E ainda havia mais isso... a depressão. A fazer gastar rios de dinheiro no psiquiatra, nos medicamentos que a punham com mais ansiedade, que lhe davam cabo dos intestinos e lhe baixavam os glóbulos brancos e a obrigavam a ajustes de terapêutica, a análises regulares para ver do Lítio, para saber do hemograma,  do fígado e do rim.

Com tudo isto ia perdendo o interesse para muitas coisas, para sair, ir ter com as amigas, ir ao cinema, passear até à praia...

Mas havia uma coisa que não dispensava. Era o jogo, o euro milhões; jogava todas as semanas, sempre dois euros e sempre os mesmos números: o do dia do nascimento, o da idade com que tinha entrado para o liceu, o da idade com que tinha acabado o curso, o da idade com que se casara e o da idade que tinha quando lhe nasceu o filho, numa cronologia de números que, quem sabe, um dia lhe poderia trazer alguma alegria... 

Trazia aquele boletim com os números esquecido na carteira há mais de dois meses. Nem sabe porque é que ficou ali, esquecido; aliás, sabia, porque  sempre que ia registar o boletim semanal, nunca levava aquela carteira e o talão lá ia ficando. Hoje deu, de novo, com ele. Resolveu metê-lo no bolso.  Era dia de novo sorteio e aproveitava para saber do sorteio daquela semana... nunca lhe tinha saído nada. Às vezes lá saíam dois números, mas eram precisos três para que desse algum prémio. Nem sabia porque é que jogava. Mas sempre que ia apostar ficava com uma fé...


E, enquanto não vinha a desilusão do não acertar nada, ia sonhando... imaginando-se com aqueles milhões que podia repartir pela família, ajudar os vizinhos, dar uma parte a uma instituição de caridade mas, sobretudo, lhe iam dar para ir passear e  descobrir o  mundo que ficava para fora dos muros da sua vida: um cruzeiro, uma viagem de avião, ir a Roma... tantos sonhos, tanta coisa imaginada, tanta coisa desejada.


E tudo ali, naqueles números, naqueles dois euros que, de um momento para o outro poderiam transformar-se em milhões.


Entregou o boletim para ver se tinha prémio... e a máquina a fazer um trim trim quase alucinante, a acender as luzes do prémio, a vibrar, a querer significar a saída de um prémio gordo; acertara nos números todos? Todos, mesmo todos...


E o trim trim a insistir, persistente, e ela a dar mais uma volta na cama, a enrolar-se no edredão branco e quente, a não querer acordar do sonho... sem vontade de atender aquele telefone insistente.  Até que o silêncio voltou a dominar...

Livrou-se de ouvir a voz agressiva do senhorio a reclamar a renda do mês... é que o dia oito já tinha sido há oito dias!



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