sábado, 5 de maio de 2012

CANTAR DE GALO

Sempre se sentiu importante, como se dominasse o mundo do alto da haste de ferro, bem por cima da chaminé.

Colocaram-no lá há muitos anos, não sabe quantos, mas atravessou duas guerras, as três gerações de famílias que já passaram por aquela casa, e lá continua, firme, bem no alto.

Não canta, apenas sabe olhar para o sítio de onde vem o vento.

O corpo é negro, da cor da tinta preta fosca com que o pintaram da última vez, mas a cauda começa descascar-se e a ganhar tons de ferrugem provocadas pelas chuvas, com uma das penas calcinada pela força de um raio, que quase o ia desfazendo, numa tarde de trovoada seca de um Setembro distante.

Houve, também, um dia em que, quase, ia morrendo... A bala de uma carabina, numa disputa de tiro ao alvo, perfurou-o mesmo no meio do corpo... Um pouco mais à frente e tinha-lhe atingido o coração... Aí, seria morte certa!

(do autor - Casal - Travancinha)
Quantas vezes, nas manhãs de frio de inverno e nas longas tardes de solidão, se imaginou um galo de verdade, a viver na capoeira lá de baixo, com o harém de galinhas, aconchegando o frio no conforto da palha, protegido da chuva pela cobertura do telhado de zinco, e seguro pela rede que impede a entrada da raposa que muitas vezes, à noite, vem rondar o galinheiro. Nessas alturas, cantava de galo, acordava o dia, cobria qualquer franga que lhe aparecesse pela frente e gostava de inchar as penas, como fazia o perú, dando ares de rei e senhor daquele lugar. Mas era o seu cantar, o seu cantar de galo, que era único, inconfundível!

Até que chegou o dia em que meteram, na capoeira, um galo novo para substituir o velho. E nem sequer lhe deram tempo para disputas, nessa mesma tarde golpearam-lhe o pescoço e serviram-no ao jantar, dentro de uma púcara de barro.

Nunca mais se imaginou a cantar de galo!




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3 comentários:

Anónimo disse...

Cada um é para o que nasce!
E, se esse galo não canta, pelo menos, encanta!
Gosto muito de galo na púcara, uma delícia que, também, encanta!
Obrigado por este momento descontraído.

Anónimo disse...

Gostei tanto desta crônica que fui à janela procurar algum galo nesta selva de pedra que se tornou o meu Rio. Nenhum encontrei. Só anônimos, distantes e frios para-raios. Sem histórias a contar. Beijinhos, lola

artemenamarques disse...

A sua crónica fez com que recordasse os muitos anos que um cata-vento me acompanhou nessa tarefa de preparar os homens do amanhã. Após a saída de todos para o aconchego do lar, eu escutava em silencio essa musica única produzida pelo cata-vento ao sabor do vento.
obrigado