domingo, 27 de fevereiro de 2011

A JANELA

Há muito tempo que aquela janela não se abria.

Nem a janela, nem a porta da casa.

Morrera a avó, os filhos por Lisboa, cada vez com menos apelo à terra e às origens, os netos já quase não sabiam da sua existência, e a janela a manter-se fechada, quase definitivamente.

A casa fora fechada há uns bons anos. Já nem se lembrava! Guardara as chaves numa bolsa preta, como se as guardasse para um luto prolongado.

E o tempo lá foi passando, com os invernos e as chuvas, com os verões e os calores, e a casa a degradar-se a pouco e pouco, a morrer lentamente.

Fora lá o fim de semana passado. Estrada nova, nem sabia!, ruas arranjadas, casas pintadas de novo, janelas floridas e, lá no fundo da rua, a casa.

Deixou o carro no largo e foi a pé, num caminhar feito com a emoção da saudade, a encher-se de memórias dos tempos passados, a avivar-se de lembranças de uma juventude feliz.

E a casa lá no fundo, imponente no seu tamanho, apenas no tamanho! As paredes, que foram de um rosa jovem e viçoso, estavam a descascar-se, a perder a pele e a mostrar as feridas feitas pelo tempo, sem ninguém que as cuidasse, o telhado mal tratado, abaulado, a pedir compostura, a exigir reparação, as janelas, de vidros partidos, de madeiras desconjuntadas, de pedaços de cortinas rasgados, esfarrapados a balançarem-se ao sabor da brisa... As portadas de madeira ainda se conservavam fechadas, a preservarem o recheio de uma casa cheia de histórias, com muita vida ali vivida.

Só aquela janela ali, no primeiro andar, ainda mantinha alguma dignidade, ainda tinha vidros, ainda deixava adivinhar a cor da madeira pintada, de um castanho avermelhado, agora desbotado, ainda tinha, por detrás, os cortinados inteiros, a guardarem, num pudor mal disfarçado, o que aquela casa ainda tinha de digno e de recordações.


(Monsaraz - 2006)
A porta aberta e o mundo da sua infância, da sua vida ali vivida, invadiu-o, esmagou-o, quase o sufocou. Foi abrindo as portadas das janelas, uma a uma, a permitir que a luz fosse rasgando uma escuridão de anos, a mostrar o pó que foi amortalhando os móveis e o chão, deixando a impressão das suas pegadas como as de um intruso que foi desenterrar uma morte quase esquecida.

Abriu a janela da sala, a única ainda com vidros, e debruçou-se no parapeito a olhar a imensidão da vista, a ver a serra ao longe, a recordar as horas que ficava ali a sonhar a vida, a imaginar aventuras, a pensar no seu futuro, no que queria ser quando fosse grande... aquela janela que o ajudou a construir o seu futuro, a fazer a sua vida.

Não, não podia deixar morrer o seu passado, não queria ver mais mortalhas nas janelas, nem vidros partidos, nem telhados frouxos, nem...

3 comentários:

Anónimo disse...

Não podia deixar morrer o seu passado...

Anónimo disse...

Enterneceu-me o modo como "segurou o passado", também tenho uma janela de uma casa quase em ruínas mas não tenho coragem de lhe dar vida. Ao ler a "sua história" apeteceu-me que tivesse uma continuidade, gosto da forma clara como nos faz chegar as suas vivências/contos.

AC

Anónimo disse...

Todos temos uma janela virada para os sonhos...a minha está virada para o Mar, sempre o Mar.Passaram por lá várias gerações,a imaginar vidas harmoniosas...Será que são?