A casa era velha e suja. O cartaz, também velho, estava escrito num azul desbotado, anunciando a venda de mobílias, de antiguidades e de velharias. Não fora a curiosidade e o gosto por coisas antigas aguçarem-lhe o apetite e não teria parado para ver o que, por ali, haveria.
Do nada, naquela campina perdida, também no meio de nada, apareceu-lhe um velho sujo, de cigarro na boca, chapéu preto, a perguntar, numa voz meio espanholada, se queria entrar para ver... Não se fez rogado.
A casa continuava a sua velhice e sujidade para dentro da porta de madeira empenada que, dificilmente, ele empurrou para abrir. Lá dentro, logo à entrada, em destaque, como para bem impressionar, o olhar a prender-se num cadeirão enorme em talha dourada e veludo vermelho, como se fosse um trono de cardeal ou de bispo, já que de rei ou de papa não poderia ser porque não tinha qualquer coroa ou tiara a adorná-lo, ao lado um armário de igreja, ainda com vestes de missa penduradas e, depois, um espaço, aberto e fundo, mas escuro, onde se amontoavam centenas de móveis, de mesas, de cadeiras, de trastes, de bugigangas num caos bem conhecido do velho que se movimentava, com destreza, por aqueles corredores abertos no meio da confusão de mobílias mal tratadas, de cadeiras empilhadas, de mesas amontoadas...
Ele disse-lhe que nada disso lhe interessava mas que procurava Cristos e imagens de santos... O velho, com ar de quase cumplicidade, piscou-lhe o olho e fez-lhe sinal para que o seguisse naquele labirinto; perdeu-se do homem por duas vezes, empancando nas pernas de uma cadeira desalinhada e na porta aberta de um armário que, perigosamente, fugia do alinhamento vertical desafiando as leis da gravidade.
Quando lhe chegou junto já ele escolhia, do molhe de inúmeras chaves aparentemente iguais, a que iria abrir uma porta, meio escondida, nas traseiras de um louceiro enorme que estava, propositadamente, afastado da parede.
Uma porta bem trancada que se abriu para uma sala escura, que ele alumiou acendendo uma lâmpada que pendia do tecto. Uma luz fraca a que não custou muito a habituar porque a luz de onde vinha já era escassa... um modo ardiloso para esconder os defeitos e as mazelas daqueles móveis todos?
E, mal a luz se acendeu, surgiram-lhe perante os olhos, dezenas largas de Cristos, que ali estavam, impassíveis, resguardados de olhares inconvenientes. Também peças de alguns santos completavam o recheio daquele lugar.
Uns na cruz, outros pousados numa mesa velha ou nas prateleiras que ladeavam as paredes velhas daquele quarto ou arrumação. Uns de olhar triste, melancólico, outros de olhar sofrido, uns de olhos fechados... Alguns bem trabalhados, com pormenores de minúcia, outros toscamente esculpidos, com aspecto bem "naïf"...
Eram mesmo muitos... e não vieram, parece, de um museu, ou de um espólio familiar... achou, por bem, não perguntar pela origem das tantas peças que ali estavam, expostas, oferecidas, sem qualquer mostra de religiosidade, sem quaisquer afectos espirituais e não outro interesse do que "este custa 200 euros, aquele com a cruz grande 350, o das vestes castanhas 150..."
Naquele momento lembrou-se do Régio e dos seus Cristos, do seu Museu, do cuidado na conservação, na beleza como estavam expostos...
E recordou, também, as inúmeras notícias de assaltos a igrejas e do roubo de peças de arte sacra que se têm perpetrado por esse país fora.
Saiu, deixando o olhar pregado num Cristo que, na cruz pregado, o olhou com um olhar sofrido e doce, como que a pedir o tirasse daquele Calvário... mas, por esse, ele pedia 500 euros!
1 comentário:
Esse Cristo é impressionante! Tem movimento, parece contorcer-se com dores. As dores da humanidade! Que sorte ter descoberto esse Senhor.
Beijos
Berta
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