sábado, 13 de fevereiro de 2010

CORRIDA LENTA NUM CAMINHAR RÁPIDO

Corria lento no caminhar rápido que se propusera.

O dia tinha acordado soalheiro, pintalgado por uma ou outra mancha branca de nuvens a anunciar calor. Roupa leve, calçado cómodo e um chapéu branco para proteger do excesso de sol na cara e nos olhos. É que isto de olhos azuis e de pele clara não gostam muito da luz intensa. E o dia prometia!

O destino, naquele passo apressado, ficava a cerca de três quartos de hora. Resolveu dar uma folga de quinze minutos e, assim, ficava a dispor de uma hora, o que lhe dava margem para, no final do passeio, tomar uma bica amarga, mas cheia de sabor e aroma, na esplanada que fica defronte do atelier.

A pintura constituía, desde há mais de dois anos, uma forma de preencher o tempo que agora dispunha em abundância. Não que se considerasse um pintor, ou disso quisesse fazer modo de vida, mas sentia necessidade de expressar, em tela, as cores e os motivos que lhe preenchiam a cabeça. Descobrira aquele piso de janelas rasgadas sobre o mar. A luz era mais intensa da parte da tarde e o ocaso, sempre diferente e sempre ansiado, justificava a sua maior dedicação ao sol, à ondulação e ao mistério.

À medida que ia caminhando, o tal caminhar rápido, o seu pensamento ia voando de um lado para outro, deslocalizava-se, e se num momento vivia o ambiente que o rodeava: a rua, as casas, as pessoas com quem se cruzava, o barulho dos carros; no outro, sentia-se a passear na montanha, a subir encostas, a vaguear entre pinheiros, carvalhos, sobreiros e medronheiros; os cheiros da terra, os rumores do vento, os cantos dos pássaros e os ralos dos insectos enchiam-lhe a imaginação.

Como por magia, o passo rápido, o tal caminhar apressado da meta dos quarenta e cinco minutos com mais quinze para a bica, no passeio cimentado, liso e confortável ao caminhar, transformava-se num caminhar lento, o caminho tornava-se irregular, pedregoso por vezes, atapetado aqui e ali de folhas e ramos que convidavam a tropeçares e a um andar hesitante; o passeio desenhado a esquadro que acompanhava os prédios, que fazia ângulos retos nas esquinas desaparecia e deixava-se contornar por arbustos que foram crescendo ao dará dos ventos, das chuvas, dos tempos; o tempo deixou de ter tempo, as paragens nos semáforos para peões, nos atravessares de rua apressados, passaram a contemplações intemporais até onde o olhar alcançava; os ruídos dos veículos a motor eram sons de floresta; os cheiros da rua sublimavam-se em aromas campestres que o envolviam.

Tudo isto em flashes de alguns segundos, minutos(?) e, de novo, o regresso à realidade, aos pregões das peixeiras, agora que atravessava o mercado, ao colorido das bancas de legumes, aos verdes, aos amarelos e aos vermelhos, ao cheiro intenso da zona dos queijos, ao encontro com um conhecido, ao bom dia e ao como vai, que a circunstância exigia.

Faltava pouco, mais um tempo de nada, e o gaio a passar-lhe à frente, com um gralhar roufenho, abrindo as asas de um azul mesclado de tons de mel, atravessando a mata, sem hesitações, num zig-zag de gincana; o balido das ovelhas a pastar naquela baixa de terreno cheio de pasto bem verde; o latir longínquo dos cães de guarda da quinta na outra encosta da serra.

Nem se lembra se chegou ao atelier ou se bebeu a tal bica amarga cheia de sabor! A verdade é que as memórias dessa manhã ficaram nos latires dos cães que  ecoavam daquela encosta do outro lado da sua vida…

1 comentário:

anniehall disse...

Gostei muito e mais não digo.