sexta-feira, 31 de dezembro de 2010

MAIS UM ADEUS

Este ADEUS não tem nada a ver com o fim do ano.

Tem a ver com o fim de uma vida.

Mais uma vida que deixou de o ser.

Uma vida que foi bem vivida, bem aproveitada, bem semeada e bem frutificada.

Um AMIGO que partiu; mais velho, mas com o espírito jovem, empreendedor e visionário.

Trinta anos de conhecimento, mais de vinte como médico e  como amigo e confidente.

Resolveu partir no último dia do ano. Resolveu despedir-se assim, sem pré-aviso, sem dores ou aflições.

Morreu dignamente, como sempre viveu.

Vai deixar muitas saudades e vai, certamente, ser recordado pela obra, pela correcção de vida, pela sensatez e pela sabedoria.

Um abraço F. A.

FIM

 
Cheguei ao fim.

Finalmente!

É que foram 365 dias. Ainda bem que não fui bissexto porque, se não, lá teria que aguentar com mais um dia.

Trezentos e sessenta e cinco dias é obra!

Experimentem multiplicar por 24 horas. Se fosse o Guterres a fazer as contas de cabeça diria: isso são umas... ora deixa lá ver, 365 dias vezes 24 horas, 3 vezes 2 mais 6 vezes 4, isso vai dar umas...hum... umas... hum... ninguém tem por aí uma máquina de calcular?

Eu sei de cor, porque me passaram todas essas horas pelo corpo, as 24 nos 365 dias, nem mais nem menos do que 8760 horas. E depois há ainda mais outras horas: aquelas horas que demoram imenso tempo a passar, as horas mortas, as horas vagas, as horas esquecidas, a hora de verão e de inverno, as horas contadas, as horas de almoço e das outras refeições, as horas para tudo, a hora para despedir... um ver-se-te-avias de mais horas a somar às tais 8760 das 24h dos 365 dias.

Se com isto das horas fiquei arrasado imaginem, então, se contasse os minutos ou os segundos... não havia blog que chegasse. Porque, para além da matemática dizer que num ano de 365 dias há 525600 minutos, temos ainda que contar com o minuto de prazer, o minuto de silêncio, o minuto de atenção...

Parece que já não vou ter minutos e, muito menos, horas para mais nada. 

Está quase na hora de me despedir, de dizer adeus e de saudar o 2011, um 2011 que não augura nada de bom. 

Dizem que vai ser o ano da crise, maior do que aquela que passou por mim. Desejo-lhe sorte e coragem!



Feliz ANO NOVO!

quinta-feira, 30 de dezembro de 2010

REGRESSO

Vai regressar a casa.

Passaram seis anos. Nasceu-lhe uma filha cá. De um quarto alugado de início, a uma parte casa e, depois de uma casa minúscula e antiga, mudou-se para outra, mais recente e um pouco maior. O espaço não abundava mas vivia mais confortável. Assim viviam: ela, o marido, o filho mais velho e a filha nascida cá.

O problema era viver o dia a dia. O marido, muitas vezes sem emprego, além de não ajudar economicamente, levava, com alguma frequência, o álcool para casa e destilava os maus humores nela e nos filhos. O filho mais velho, na escola, tinha problemas de relacionamento com os colegas e, por vezes, ela recebia telefonemas da professora por causa das brigas e zaragatas que ele criava ou lhas criavam os colegas. A filha tinha que andar em bolandas do infantário para a ama, quase sempre constipada ou com os problemas da alergia. Ela, no seu emprego, entre limpezas e atendimento atrás de um balcão, numa vida de corre corre, a levantar cedo, a preparar o pequeno almoço para os filhos, a levar o filho à escola e a menina ao infantário, a ter de deixar o almoço meio preparado para o marido que, de novo, estava desempregado, pegar o autocarro para estar, impreterivelmente, às nove no emprego. Ao fim do dia, pelas seis da tarde, desbobina o filme ao contrário, e quando chega a casa começa a preparar o jantar, faz a limpeza da casa, lava a roupa, dá banho aos filhos e, por fim, encontra cinco minutos de paz.

E a vida correr mal, o casal discutir mais do que falar, os amuos a serem constantes, e a vida a desfazer-se... cada um a querer seguir o seu rumo. Ela, pouco motivada, na vida, no trabalho.

Mas sobretudo eram, também, as saudades da terra, as saudades da mãe, da família, da casa, do pedaço de terra lá longe. Fora o lugar onde nascera, o lugar onde fora criada, onde  crescera, onde aprendera a ler e a escrever, onde tivera o primeiro namorado... depois partiu para outra terra, conheceu o marido, tiveram o filho e resolveram vir procurar novas oportunidades.

Oportunidades que, verdadeiramente, nunca surgiram. Fora uma vida de sacrifícios, de invernos frios a que não estavam habituados, de modos de vida diferentes, de dinheiro que nunca abundou, de desilusões...

Agora chegou a altura de regressar, de recomeçar.

Boa viagem! Boa sorte! Bom regresso!

quarta-feira, 29 de dezembro de 2010

DESTA VEZ O JANTAR FOI ARROZ DE POLVO

Fazia tempo que não se juntavam  e que não jantavam. A última vez fora ainda antes do Verão, um jantar de perdizes de escabeche, que ficaram guardadas para a ocasião e que tinham sido oferecidas na altura da caça...



Desta vez o jantar foi arroz de polvo, um arroz bem malandrinho, a cheirar a delícia e a saber divinamente. Bem temperado, com o polvo macio a derreter-se na boca e o arroz apurado e molhado o suficiente. O vinho tinto, de textura aveludada, adequava-se perfeitamente à substância. A sobremesa foi um queijo da Serra, amanteigado, a escorrer para o pão alentejano bem fatiado. O café e uma aguardente de medronho remataram a refeição.

O jantar apenas serviu para que este grupo de amigos se encontrasse à volta de uma mesa, pusesse a conversa em dia, contasse histórias engraçadas mas, sobretudo, renovasse e consolidasse uma amizade de muitos anos. Um jantar de final de ano onde se bebeu e se brindou ao ano que está, quase, a ir embora e ao ano novo que está para vir.

Não se falou da crise, não se discutiu política, não se fizeram prognósticos sobre eleições, nem se ouviram críticas ao governo, como se este período de Natal e de Ano Novo fizesse esquecer o desagrado e valorizasse, ainda mais, a ligação velha daquela amizade.

E, desta vez, o rei foi o malandrinho do arroz de polvo.

 

terça-feira, 28 de dezembro de 2010

PERÚ

Naquele Natal fartou-se de perú. Foi perú na véspera, foi perú no dia de Natal, foi perú no dia a seguir e perú no dia a seguir ao dia a seguir.



Perú assado, perú recheado, bifes de perú, strogonoff de perú, perú com laranja, perú com batata frita palha, perú com puré de castanhas, perú com...

Parecia não poder livrar-se do perú. E, tão cedo, sabia que o perú havia de dominar parte das refeições: é que a empregada tinha já preparado os croquetes com a carne que restou e já os tinha posto a congelar...

Até o vinho tinto lhe fazia lembrar o perú... no glú glú de o beber do copo.

segunda-feira, 27 de dezembro de 2010

SONHOS

Com calda de açúcar, são óptimos.


Também os polvilhados com açúcar e canela, são uma delícia.
 
São, talvez, os doces mais tradicionais do Natal. E é pena que só se façam nesta época natalícia! 

O pior é aquela gordura toda e aquele açúcar a escorrer, a lambuzar os dedos e a largar as calorias todas no corpo.

Mas estes são os sonhos de comer. Porque há os outros, os de sonhar, os que são sonhados na cama, preferentemente.

É que estes sonhos de cama, quando são bons, ainda são melhores do que os com calda de açúcar, ou os polvilhados com açúcar e canela.

Há quem não costume sonhar enquanto dorme. Quem goste mais de sonhar acordado, de imaginar, de pensar no como seria bom se...

O pior é quando os sonhos se tornam pesadelos, quando trazem angústia, quando incomodam o dormir, quando dão mau acordar.

Além do mais, para pesadelos basta ver a televisão, ouvir a rádio, ler os jornais, com aquelas notícias todas da crise, com as perspectivas catastróficas para 2011.

Parece que, para o ano, os Pesadelos vão ser os amargos mais tradicionais da época natalícia.


domingo, 26 de dezembro de 2010

CONSO(L)ADA

Chegaram todos. A família reuniu-se, finalmente!
A família toda: os do lado dela e os do lado dele; deles, dos dois, eram só eles... já não tinham idade para terem geração deles mesmos. Mas, ali, todos juntos, eram todos de todos.

Foi o primeiro Natal assim, a primeira Consoada; até então, o Natal tinha sido sempre de um para cada lado, afastados nos locais, nas famílias, mas este ano não!

A casa foi sendo preparada, com tempo e com amor, para este Natal especial. Os presépios, sim porque tinham muitos presépios,  foram sendo distribuídos por toda a casa, nos quartos de dormir, nas salas, na sala de jantar, no escritório, até na cozinha... só não acharam bem colocar na casa de banho, por uma questão de pudor, de uma certa vergonha, embora o Menino também tenha vindo ao mundo despido de roupas!

O Presépio principal, o da sala, foi sendo preparado com alguma realidade na cronicidade: primeiro, só uma Senhora do Ó, mais tarde, um casal, com Ela grávida em cima de um burro  e  uma cabana (o presépio) bem afastado, porque o caminho era longo, depois, o casal  já no presépio com o burro e uma vaca que ali já estava e, na noite do 24 para 25, arranjou-se a manjedoura com as palhinhas de modo que, à meia noite, se colocasse lá o Menino Jesus, um Menino sorridente, com um sorriso tão inocente como só os meninos conseguem ter e com a mão direita levantada, como a querer abençoar aquela casa.

Ao longo do dia de Natal, trazidos por cada um dos membros daquela família, agora grande, foram sendo colocados os pastores, uns ainda a caminho e outros já ajoelhados diante do Deus-Menino, mais as ovelhas e um cão... é verdade, naquele presépio havia um cão, daqueles que ajudam os pastores a tomar conta das ovelhas. É que eles gostavam muito de cães, eram os seus amigos no dia a dia, ali, naquele lugar ermo da Serra; os cães que lhes faziam companhia e os protegiam no seu isolamento. Também havia, um porco, um galo, galinhas e patos, que os pastores tinham trazido como presente àquela família.

Depois, foi posta, no alto do presépio, a estrela de Natal e, no canto oposto, foram colocados os Reis Magos que, cada dia que vai passando, se vão aproximando do estábulo onde o Menino se encontra. E assim será, até ao dia de Reis, o dia das prendas do Menino e do seu reconhecimento como Deus, como Rei e como Homem.

(Presépio de Machado Castro - séc XVIII - barro policromado)

Na verdade foi um Natal muito especial. Mas sobretudo foi, para ela, especialmente para ela, o seu melhor Natal.

E nessa noite, na noite do seu Natal, já no sossego da cama, no calor dos lençóis brancos de flanela e do edredão fofo, no aconchego um do outro, ela sentiu que a sua noite de Consoada tinha sido, verdadeiramente, consolada.



sábado, 25 de dezembro de 2010

NATAL

O dia mais importante do ano!

O dia em que nasceu o Homem, o Filho de Deus, feito Homem!




O dia em que Deus, na Sua Magnitude, e na Sua Humildade, se fez à nossa imagem e semelhança.

Deus, o Todo-Poderoso, a tornar-se Homem; um Homem tão especial que São João Baptista, o que baptizava em nome de Deus, dizia não ser digno de lhe desapertar os atilhos das sandálias.

Estamos sempre a tempo de nos impregnarmos deste espírito de Natal! Afinal, se Natal é sempre que o homem quiser, porque é que não o celebramos todos os dias?

Santo e Feliz Natal!

sexta-feira, 24 de dezembro de 2010

O PRÉMIO

Dormira mal aquela noite, aliás, já havia muito tempo que não dormia com sossego. Eram fantasmas de mais: a casa para pagar, as contas da electricidade que, agora com o frio, aumentaram significativamente, o gás, o passe dos transportes que sofreram um aumento inesperado, os pais velhos e doentes sem ninguém, a não ser ela, para os ajudar, as preocupações do emprego, sempre na angústia do encerramento da empresa, o filho longe e que já não dava notícias há muito tempo, tudo a tirar-lhe o sono, a dar-lhe insónias, a torná-la mais triste e deprimida.

E ainda havia mais isso... a depressão. A fazer gastar rios de dinheiro no psiquiatra, nos medicamentos que a punham com mais ansiedade, que lhe davam cabo dos intestinos e lhe baixavam os glóbulos brancos e a obrigavam a ajustes de terapêutica, a análises regulares para ver do Lítio, para saber do hemograma,  do fígado e do rim.

Com tudo isto ia perdendo o interesse para muitas coisas, para sair, ir ter com as amigas, ir ao cinema, passear até à praia...

Mas havia uma coisa que não dispensava. Era o jogo, o euro milhões; jogava todas as semanas, sempre dois euros e sempre os mesmos números: o do dia do nascimento, o da idade com que tinha entrado para o liceu, o da idade com que tinha acabado o curso, o da idade com que se casara e o da idade que tinha quando lhe nasceu o filho, numa cronologia de números que, quem sabe, um dia lhe poderia trazer alguma alegria... 

Trazia aquele boletim com os números esquecido na carteira há mais de dois meses. Nem sabe porque é que ficou ali, esquecido; aliás, sabia, porque  sempre que ia registar o boletim semanal, nunca levava aquela carteira e o talão lá ia ficando. Hoje deu, de novo, com ele. Resolveu metê-lo no bolso.  Era dia de novo sorteio e aproveitava para saber do sorteio daquela semana... nunca lhe tinha saído nada. Às vezes lá saíam dois números, mas eram precisos três para que desse algum prémio. Nem sabia porque é que jogava. Mas sempre que ia apostar ficava com uma fé...


E, enquanto não vinha a desilusão do não acertar nada, ia sonhando... imaginando-se com aqueles milhões que podia repartir pela família, ajudar os vizinhos, dar uma parte a uma instituição de caridade mas, sobretudo, lhe iam dar para ir passear e  descobrir o  mundo que ficava para fora dos muros da sua vida: um cruzeiro, uma viagem de avião, ir a Roma... tantos sonhos, tanta coisa imaginada, tanta coisa desejada.


E tudo ali, naqueles números, naqueles dois euros que, de um momento para o outro poderiam transformar-se em milhões.


Entregou o boletim para ver se tinha prémio... e a máquina a fazer um trim trim quase alucinante, a acender as luzes do prémio, a vibrar, a querer significar a saída de um prémio gordo; acertara nos números todos? Todos, mesmo todos...


E o trim trim a insistir, persistente, e ela a dar mais uma volta na cama, a enrolar-se no edredão branco e quente, a não querer acordar do sonho... sem vontade de atender aquele telefone insistente.  Até que o silêncio voltou a dominar...

Livrou-se de ouvir a voz agressiva do senhorio a reclamar a renda do mês... é que o dia oito já tinha sido há oito dias!



quinta-feira, 23 de dezembro de 2010

CONTRADIÇÃO

Acho que se vivem momentos de grande contradição.

Por um lado, fala-se imenso da crise, do fim do dinheiro, do FMI que vem aí, do corte nos salários, das pensões de reforma que encolhem, do aumento dos impostos, da subida em flecha do IVA, do aumento dos combustíveis, dos transportes mais caros, das dificuldades, do  apertar do cinto, da necessidade de poupar, de guardar dinheiro para os maus tempos que se aproximam...

Por outro lado, os carros têm-se vendido como pão, os centros comerciais estão cheios de gente, as vendas têm crescido, os restaurantes estão cheios, os vinhos vendem-se os mais caros, o champanhe  francês escorre, os jogos electrónicos, os telemóveis topo de gama, os computadores, tudo sai, tudo se esgota...

Como vai ser o amanhã? Despreocupado? Constrangido? Desafogado? Sufocado? Satisfeito? Tristonho? Guloso? Famélico?

"Há, na parte mais ocidental da Ibéria, um povo muito estranho que não governa nem se deixa governar" - isto foi escrito no século  III AC por um general romano, provavelmente Galba, em carta enviada ao imperador de Roma. 

Parece que continua tudo na mesma...


quarta-feira, 22 de dezembro de 2010

A VIAGEM

Conseguiria chegar a tempo?

O trabalho terminara tarde, ainda estava longe de casa, muito longe. A tarde fria e chuvosa a esgotar-se e quase sem tempo para chegar a horas. Tinha prometido que chegava antes da meia-noite, ainda a tempo do Natal.

A estrada escura, molhada, com rios de água feitos pelos rodados dos camions, o nevoeiro a chegar e o trânsito a avolumar-se. Ainda faltavam muitos quilómetros, a distância parecia que não queria encurtar, e o tempo a passar.

Onze horas da noite... a faltar já menos de uma hora para o prometido.

Ela, em casa, enroscada na manta, olhava o lume da lareira, escutava o chiar da panela de ferro, a querer acreditar que iria ter a sua primeira consoada a dois... ela e ele.

A estrada a encurtar-se, o céu a dar tréguas à chuva, a lua cheia, como um balão enorme, a espreitar por entre as nuvens negras e a iluminar a paisagem, a deixar o caminho livre, a abrir as portas do Natal.

E-lo que chega, quase em cima da hora...  Ela, a desenroscar-se da manta de quadrados, a saltar do sofá, a acender a vela vermelha por cima da lareira e a correr-lhe para os braços...

Finalmente o Natal chegara, para os dois.

terça-feira, 21 de dezembro de 2010

A NEVE

Desta vez, a brancura da neve e o seu encanto, transformou-se numa angústia e num pesadelo a impedir voos, a atrasar regressos, a dificultar o Natal.

A lembrar a nuvem negra do vulcão islandês.

A natureza, mais uma vez, a afirmar que nada somos, e nada podemos.

É o homem a querer pôr e Deus a dispôr.

segunda-feira, 20 de dezembro de 2010

NOSTALGIA

Nostalgia dos Natais quando era pequeno, quando ia para os frios da Beira Alta.

Nostalgia das casas grandes dos avós, frias, mas cheias de calor da família.

Nostalgia da Missa do Galo, da igreja  gelada, dos cachecóis a tapar a cara, das luvas de lã, a esconderem as frieiras dos dedos, dos gorros enfiados na cabeça até aos olhos.

Nostalgia do chegar a casa, cheios de frio, do sentar à mesa para a ceia quente, da abertura das prendas à volta da lareira.

Nostalgia da hora de ir deitar, do quarto frio,  do caramelo de gelo no interior dos vidros da janela, da cama gelada, da botija de lata envolta numa camisa de flanela, do entrar na cama, devagarinho, rolando a botija à frente dos pés. 

Nostalgia do quase não adormecer porque o mexer na cama causava despertares frios de lençóis gelados, do quase não sentir a ponta do nariz  e as orelhas, de tão frios...

Agora tudo mudou, as casas não são tão grandes, são mais aquecidas, os quartos já não têm o frio de antigamente, mas sobretudo, agora, as camas têm um edredão... daqueles fofos e bem tufados... prontos a aquecerem o corpo, a confortarem o coração, a darem um adormecer tranquilo, a garantir um dormir sossegado.

O Natal, agora, passa-se melhor, com mais conforto, com mais calor, mas não deixa esquecer, nunca, o Natal da infância, o intenso frio beirão mas, sobretudo, o imenso calor do coração dos meus avós.

 (Casa dos avós - Mangualde - Foto de Agnelo Figueiredo)
          



domingo, 19 de dezembro de 2010

O PRESÉPIO

Este ano não armou a árvore de Natal, não colocou bolas, não pôs luzinhas a apagar e a acender, não pendurou os tradicionais enfeites, o pai Natal, o trenó, as renas, os sacos de presentes, os sinos, as estrelas...

Apenas armou um Presépio, simples na sua essência, simples nas imagens, sem adornos, sem vaca nem burro, sem pastores, sem ovelhas, sem a estrela de Belém, sem réis magos...

Foi assim que o Menino nasceu, por isso, assim quer que seja o seu o Presépio. 

Porque foi, na simplicidade deste Presépio, que nasceu o Homem mais importante de toda a humanidade...

... que pena não termos todos aprendido a grandeza desta lição de simplicidade!



sábado, 18 de dezembro de 2010

CHÁ E TORRADAS

O almoço tinha sido uma delícia, a Perdiz à Glória estava divinal, o leite creme a deixar saudade em cada colher que era comido, o vinho com  uma textura aveludada e toques de baunilha.  Terminou com o café e com o sorriso do empregado quando entregou a conta.

Passou a tarde a falar do almoço, a falar da perdiz à Glória, e que estava uma glória... tinha achado piada ao trocadilho - glória à Glória - e não parou de falar disso... glória à Glória, a  perdiz, e o leite creme, com o açúcar queimado. Aliás, não sabia do que gostava mais, se do leite creme ou daquele açúcar caramelizado, queimado, a impregnar de sabor aquele creme.

Começou a sentir um ligeiro desconforto no estômago, um certo ardor, uma azia, depois um enfartamento, depois uma náusea, uma agonia... e lá se foi a perdiz, o vinho, o leite creme...

Naquela noite, o jantar foi um chá e duas torradas...
   

sexta-feira, 17 de dezembro de 2010

MORANGOS

Estavam ali, na banca do supermercado, bem acondicionados, bem expostos, vermelhos, a lembrarem enfeites de Natal, daqueles de pendurar na árvore.

Além do mais deitavam um aroma que já não era habitual sentir... cheiravam mesmo a morango, a lembrar os "fraises du bois" que comera, uma vez, em Paris!

Os últimos que tinha comprado também eram bonitos, rechonchudos como um beijo, mas quase a cheirarem a  nada e, depois, ao saboreá-los, foi uma desilusão: boa consistência mas, mais nada, nenhum paladar.

Estava decidido, ia comprar duas caixas destes a cheirar a morango, com um vermelho forte e intenso de bolas de Natal e ia guardá-los para a consoada... já quase à porta. 

É verdade, este ano  passou rápido,  tinha sido um ano cheio de mudanças, um ano diferente.

Levou duas caixas, quase um quilo de morangos. 

Antigamente, nesta altura, nunca havia desta fruta mas, agora, com as estufas, com os transportes rápidos, era possível comer fruta fresca vinda dos países tropicais, ou do outro lado do mundo... até na fruta a globalização aconteceu!

Mas estes morangos tinham cheiro. No curto trajecto até casa o carro ficou impregnado deste aroma único do morango.

Pôs as duas caixas em cima da banca da cozinha enquanto abria a porta do frigorífico para arranjar um espaço para os guardar... até ao Natal! A pensar numa sobremesa especial, em que colocava os morangos num espeto de madeira e mergulhava, de seguida, numa calda quente de chocolate.


     

A fazer-lhe lembrar Bruxelas, a Grande Place, a casa Leónidas na esquina... uma tentação.





Mas o aroma que estes exalavam necessitava de confirmação em termos de sabor. Abriu a caixa, pegou num, pelo pé, e trincou-o desconfiada se não iria saber a nada. Mas não, o sabor correspondia ao cheiro, eram mesmo uma delícia... e deixou-se tentar por mais outro, e outro, e outro, e outro... e fechou a caixa rápido para a meter no frigorífico. Naquele espaço ali, mesmo ao lado da taça com o chocolate que preparara na véspera para os crepes com chantili.

E a gula a tentá-la, a pedir-lhe para aquecer no microondas aquele chocolate frio, a deixá-lo bem quente, e a mergulhar, um a um, cada morango naquele "fondue" dos deuses...


Passou o resto da tarde naquilo... a saborear prazeres, a imaginar sentires, a recordar saudades...





quinta-feira, 16 de dezembro de 2010

LAMEGAL

"A minha velha tia na sua antiga casa, no campo
Onde eu era feliz e tranquilo e a criança que eu era..."  
(Álvaro de Campos).

A minha velha tia chamava-se Ana, e a sua casa era no campo,  no Lamegal.

E lá, fui uma criança muito feliz e tranquila...

Uma casa de aldeia, na Beira Alta, de granito, de bom tamanho, com uma escada por fora, a subir encostada à casa, um patamar com alpendre e a porta de entrada. Era uma casa rectangular com um pátio interior.

Entrava-se para uma sala para a qual davam dois quartos, um de cada lado, e dela saía um corredor curto que terminava numa varanda interior, em quadrado, com o centro, onde era o tal pátio, de céu aberto. Os quartos e as salas dispunham-se à volta dessa varanda.

A cozinha encostava-se a um enorme penedo de granito que fazia de parede. E tinha uma "marquise", comprida, toda envidraçada, com uma mesa enorme onde nos sentávamos, nos lanches de sábado, a comer o pão acabado de cozer no forno, com sardinhas, também assadas no mesmo forno.

Nunca mais vi nenhuma assim, nem nunca mais comi lanches, assim, tão saborosos.

Voltei lá há uns anos atrás. Abandonada, desventrada, em ruína total... uma tristeza!

A saudade feliz que me fez voltar lá, transformou-se, quase no mesmo instante, numa nostalgia triste e desiludida...



(A casa do Lamegal - fotografia de Ricardo Campos)


quarta-feira, 15 de dezembro de 2010

FICARAM JUNTOS

Ficaram juntos, perderam a mãe e ficaram sós, mas juntos, um e o outro.
 
Percorreram caminhos, passaram quilómetros,  subiram veredas, atravessaram pastos, bordejaram lagoas, até que chegaram, quase, aos picos da vida, quase ao fim do mundo.

Cansados, esgotados, arranjaram um canto para se encostarem.

E ali ficaram os dois, aninhados, assustados,  carentes, famintos, mas vivos.

Esperando. Esperando um futuro, um amanhã...

Mas hoje estavam ali, os dois, juntos!

E por ali ficaram...


(Furnas - Ilha de São Miguel - Açores - 2003)



terça-feira, 14 de dezembro de 2010

MEIAS SOLAS

Estão gastas, as solas. 

Gastaram-se até à alma do sapato.

Até deu para roçar a meia no alcatrão da estrada!

Agora nada mais resta, tudo está gasto, até o dinheiro para comprar meias solas.

Os tamancos vão ser a solução; daqueles feitos de madeira, uns socos rústicos, desconfortáveis, que fazem calos nos pés. Que põem os pés frios, húmidos, doridos...

Claro que os causadores desta desgraça não vão querer andar de tamanco ou de chinelo.

Mas antes que queiram voltar a usar sapato fino, de verniz e sola, o melhor é colocar-lhes logo umas ferraduras, bem cravadas, daquelas que fazem barulho quando tocam no chão... toc, toc, toc... como o das cavalgaduras!

Assim, ouvem-se ao longe... será que este país vai parecer um picadeiro?


(Salzburg - Áustria - Junho de 2006)

segunda-feira, 13 de dezembro de 2010

AO CONTRÁRIO

Veio um tornado que levou tudo adiante. Varreu a zona centro do país. Destelhou casas, deitou empenas abaixo, partiu, devastou.

Não teve piada nenhuma!  Destruiu as parcas economias de muitos habitantes, destruiu sonhos, destruiu esperanças...

Claro que o ministro do pelouro, não sei o nome, lá apareceu, com ar sinistro, a falar para as câmaras (da televisão, entenda-se!). Só isso! Não falou em dádivas, em ajudas rápidas, em apoios urgentes. Que esta gente não dá nada! Só tira!

O que surgiu foi o espírito de entreajuda dos vizinhos, de Portugueses, que dispuseram o seu fim de semana, os seus tempos livres para ajudarem, gratuitamente, sem juros, na reconstrução das casas devassadas.

Mais uma vez o espírito de solidariedade (não de socialidade) veio à tona.

Precisamos deste povo assim, não precisamos é de governantes assim!

Este açoriano, não quis perder tempo... tratou logo de virar a casa, não vá um tornado aparecer por lá! Uma bela jogada  de antecipação!

E se o ministro aparecer por lá...


(Furnas - São Miguel - Açores - Julho de 2008)

domingo, 12 de dezembro de 2010

DOR

Andava há umas semanas com aquela dor, uma moínha nas costas que, por vezes, lhe chegava ao peito. Atormentava-o mais quando se sentia mais cansado, quando andava com mais stress, quando estava mais tempo sentado ao computador...

Incomodava-o mesmo, e tanto, que resolveu ir ao médico.

Ficou com a consulta marcada só para "daqui a duas semanas"... tudo cheio! Como não era uma urgência, tinha que aguentar.

E a moínha a atormentá-lo, a tornar-se mais consciente, a provocar-lhe ansiedade e, como não aguentasse mais e se sentisse mais ansioso, para além dos analgésicos, começou, por moto próprio, a tomar ansiolíticos.

Com o passar dos dias, com o aproximar do dia de ir ao médico... a tal sumidade... a dor começou a tornar-se mais  uma  companhia do que um incómodo. Por vezes já nem dava por ela, havia alturas em que se esquecia dela, já dormia mais tranquilo e andava, sobretudo, muito mais relaxado, mais tranquilo. E tudo isto desde que começou a tomar o ansiolítico. 

Na véspera da ida ao médico já não sentia dor nenhuma... ficou na dúvida se devia lá ir. Pagar uma consulta agora que não tinha nenhuma dor... agora que andava tranquilo, sem stress, descontraído, bem disposto.

Mesmo assim foi, achava que estava na altura de fazer um check-up, estava na idade ideal para tal: saber da glicémia, do colesterol, da próstata, fazer o HIV, uma radiografia. Nunca tinha feito um check-up e, de certeza, o médico ia pedir tudo. Pelo preço que lhe disseram que custava a primeira consulta... até devia ter direito a um exame completo ao coração e a uma TAC a qualquer coisa.

Esperou quase duas horas. Era um médico muito famoso e, disse a recepcionista, que hoje até era um dia calmo. É que o doutor tinha mandado desmarcar alguns doentes, os do fim do dia. Não andava muito bem, com uma dor nas costas, uma moínha que o incomodava bastante. Andava muito stressado, muito cansado e, desde o início da semana que andava com aquela dor incomodativa. Já lhe tinha dito que talvez fechasse o consultório se a dor não passasse. Tinha até já dado ordem para desmarcar os doentes.

Chegou a altura... o momento da consulta. Entrou e vê o médico sentado à secretária, com ar de sofrido, inquieto, dorido, com a mão a apertar o ombro, mesmo por cima da omoplata... tal como ele andava há umas semanas atrás. Sobretudo muito ansioso!

Não disse nada, apenas meteu a mão no bolso do casaco, tirou a caixa dos comprimidos ansiolíticos e deu-a ao médico. Experimente estes, dei-me bem com eles, vai ver que fica bom num instante.

As melhoras!

E saiu porta fora. Não pagou a consulta, mas também não lhe levou nada pelos comprimidos.



sexta-feira, 10 de dezembro de 2010

O CHAPÉU

 Tinha-o comprado num mercado de rua... um mercado de chão, daqueles de passeio, encostado a um muro... havia chapéus, capulanas, lenços, chinelos de praia...  tudo multicolor, com as cores fortes e intensas da África oriental e meridional.

Foi o chapéu que lhe chamou a atenção... de uma cor indefinida, com toques de um cinzento quase branco e de um rosa velho, desmaiado... a contrastar, pela sobriedade, com os outros chapéus ali amontoados; parecia feito de sisal e lã... tricotado como um crochet de fio duplo, a aba sem remate, a deixar pontas espigadas, quase propositadas, a dar um ar  rústico.

Pegou nele, colocou-o na cabeça... cabia perfeito... olhou-se no espelho gasto, fracturado de cima a baixo, que estava pendurado naquele muro velho... ficava lindo, sentia-se bem com ele... reparou no entrançado do mesmo material a fazer de fita do chapéu, e no toque de graça feminina... uma flor de plástico branco, de pétalas  mal recortadas, ponteadas por missangas vermelhas e com  o centro, também, feito das  mesmas missangas vermelhas.

Da flor saíam uns bigodes que lembravam os do "Farrusco", o seu gato branco farruscado de manchas de pelo preto, mas que tinha um bigode farto e comprido...

Uma compra destas não acabava sem ser bem regateada. O preço era quase uma ninharia mas, mesmo assim, o vício do regateio, do oferecer um terço do valor para deixar subir até metade, era superior às suas forças e à justeza do preço originalmente pedido. Mas ela gostava de regatear...

O clima quente e o sol intenso daquelas regiões pediam um chapéu leve, bem arejado e que protegesse dos raios daquele sol inclemente.  É que a pele branca, herdada de vikings que passaram pelo Minho, não facilitava nada... tinha vários casos na família de doenças de pele causadas pelo sol e não queria que lhe acontecesse o mesmo... 

Gostou tanto dele que não o tirou mais; até almoçou na esplanada do Jardim Primavera de chapéu posto. A olhar o mar, a sentir a brisa amena que lhe acariciava o rosto, a recordar outros tempos em que ali ia, nas tardes de verão, com os amigos e colegas da Faculdade.

Mas hoje estava sozinha, tinha resolvido dedicar o dia a si... só a si.

Ali ficou! Na esplanada... a brisa a tornar-se um vento mais mantido, uma ou outra sopradela mais forte, o mar a encrespar, a criar uma ondulação que batia com insistência no muro alto que protegia a esplanada... de súbito, uma rabanada de vento mais forte, e o chapéu a voar... em rodopios... e ela a correr, a tentar chegar-lhe com a ponta dos dedos, quase quase, mas o vento, castigador e traiçoeiro, levou-lho... e fê-lo pousar no mar agitado...

Ainda por cima, ela que não sabia nadar...

(Moçambique - Pemba - Dezembro de 2006)



quinta-feira, 9 de dezembro de 2010

A ROSA VERMELHA

Tinham ido à praia... ele tinha saudades do mar, ela do sol, do sol que lhe aquecia o corpo, lhe amorenava a pele...

Passearam juntos pela beira-mar fora, correram atrás das gaivotas, sentaram-se na areia molhada,trocaram abraços, beijos, e, sobretudo,  juras de amor, promessas de fidelidade, de cumplicidade, de verdades...

Apanharam conchas, imaginaram figuras nas nuvens brancas daquele céu azul, escreveram os seus nomes na areia, desenharam corações e setas de cupido a atravessarem-nos e construíram castelos.

Deixaram que a maré voltasse e fosse, lentamente, onda a onda, apagando as marcas deixadas naquela areia... 

Depois de tudo liso, sem desenhos, sem castelos, sem pegadas, como se tivessem diante de si uma mesa imensa, com uma toalha cor de areia, ele tira da mochila os copos de cristal... bem aconchegados... a garrafa do champanhe... ainda bem frio... e deixa que a rolha salte como explosão de um orgasmo!

Brindaram à felicidade de momento, ao amor, à construção do futuro, à vida a dois a avizinhar-se...

Abre, de novo, a mochila e tira uma rosa... vermelha...  para ela, para o culminar da emoção do momento...

E, enquanto foram tomar banho, deixaram a rosa dentro da garrafa, ainda meio cheia, a beber, também, daquele suco, daquele néctar,  pétillant...  cheio de gás feito bolhinhas... e a transformar aquele champanhe bruto num doce champanhe rosé!




(Ribeirinha - Salvador - Fevereiro de 2007)

quarta-feira, 8 de dezembro de 2010

EU QUERO AMAR, AMAR PERDIDAMENTE!

Faz hoje 80 anos... foi em 8 de Dezembro de 1930...  que a Florbela abandonou a sua tristeza.

Conforme disse: "Esta é a história da minha tristeza. História banal como quase toda a história dos tristes." 

Faz hoje 80 anos... foi no mesmo dia em que nasceu... com 36 anos...  com Veronal... dois frascos... 

Deixou-nos um legado inestimável... de muito amar... de muita paixão... de muito querer e não querer...

Ela que foi fruto de amores proibidos... de amores desencontrados... fruto não desejado... Flor Bela de Alma Conceição, que cantava...

"Eu quero amar, amar perdidamente !
          Amar só por amar: Aqui ... além...
          Mais Este e Aquele, o Outro e toda a gente ...
          Amar ! Amar! E não amar ninguém !"

 E quantas vezes não juntou ao amor o erotismo?
 
     " As tuas mãos tacteiam-me a tremer...
          Meu corpo de âmbar, harmonioso e moço,
          É como um jasmineiro em alvoroço,
          Ébrio de Sol, de aroma, de prazer! "
 ou,
 
   "Beija-me as mãos, Amor, devagarinho...
                  Como se os dois nascêssemos irmãos,
                  Aves, cantando, ao sol, no mesmo ninho...
                  Beija-mas bem!...Que fantasia louca
                  Guardar assim, fechados, nestas mãos,
                  Os beijos que sonhei pra minha boca!..."




A Florbela não morreu... está viva! Como Camões, como Pessoa... como TODOS os grandes... tão grandes... tão grandes... que se tornaram eternos!


A ENCOMENDA

Levava o rótulo de muito frágil, era uma encomenda mais que preciosa... era uma peça única... original... Não tinha jeito de a entregar pessoalmente... não teve outro remédio senão solicitar os serviços de uma firma de entregas... no destino alguém haveria de lha entregar em mão...

Escolheu a melhor, a de mais confiança, a que lhe oferecia mais garantias...

Rapidez, segurança, acondicionamento, e uma série de seguros... caso aconteça algum problema... um atraso, roubo do veículo, colisão, quebra... 

Assim foi... fez questão de a entregar pessoalmente ao motorista do camião... explicou-lhe da preciosidade da encomenda, da sua fragilidade, a quem tinha de ser entregue... viu bem onde ele a colocou... acomodada no meio fardos de algodão... na parte da frente estavam os bidões de aguarrás,  a seguir as paletes dos pisos flutuantes de madeira... de jatobá... depois os fardos de algodão com a sua encomenda bem acondicionada... e lá para trás dois contentores cheios de caixas de velas decorativas...

Saiu à hora certa... rumo ao destino comum de toda a mercadoria... ia chegar na hora acertada... precisava de lhe telefonar...a confirmar a hora da partida... a dizer da hora provável da chegada... 

Ela não sabia o que era... apenas uma prenda... única... preciosa pela originalidade... e, como todas as obras de arte... frágil... muito frágil... acima de tudo não podia suportar temperaturas muito altas... por isso se decidira pela camião frigorífico... os bidões da aguarrás e as velas decorativas.. exigiam temperaturas baixas... o ideal para o transporte da encomenda...

O motorista não se apercebeu... os carros que passavam por ele buzinavam... os dedos indicavam a traseira... e notou, pelos retrovisores, as chamas que saiam... do lado esquerdo...o vento na mesma direcção... em plena ponte... sobre o rio... o rio que  separa as margens... largo... enorme... quase um mar...

Assistiu impotente... ao fogo que tudo consumia... às explosões dos bidões da aguarrás... ao arder da estearina das velas decorativas... aos sacos de algodão a servirem de grandes  tições... a desenvolverem mais calor...

A estrutura a desaparecer... os pneus em fogo a estrondearem... e tudo a transformar-se em fogo...  em brasas... como um imenso tição... um pavor... um calor de queimar... de assar...

E a encomenda, que não podia suportar muito calor... ali, no meio da chamas, das brasas... a volatilizar-se... a desaparecer num ápice...

Mais tarde... veio a saber que só não foi feito um seguro... contra incêndios!..  ..


(Lisboa - Ponte Vasco da Gama - Setembro de 2004)

terça-feira, 7 de dezembro de 2010

CRIANÇA

Sonhava... sonhava viagens... umas perto, outras longínquas... sempre à volta do seu mundo... 

Nas viagens mais perto ia no seu cavalo mágico... cor de rosa... que ela nunca largava... cavalgava pelos ares... mas só em viagens curtas... cansava-se!

Para as viagens mais longas usava um dos múltiplos aviões brancos... que giravam, giravam sempre, ao seu redor... nas visitas ao mundo das suas histórias...

Hoje ia até à terra da Alice...ao País das Maravilhas... de certeza que ia cruzar-se com o Coelho Apressado, que precisava urgentemente de saber as horas... pois estava sempre atrasado...

Ontem tinha passado a tarde em casa da Carochinha... aprendeu a fazer sopa, esteve com ela à janela, mas não viu o João Ratão...

No outro dia quase se perdeu na floresta à procura da Capuchinho Vermelho... ia cheia de medo que o lobo  mau já tivesse comido a avó... mas, finalmente, encontrou-a  com a avó... na casa da floresta... o lobo mau ainda não tinha aparecido...

A mesma coisa aconteceu no dia em que foi a casa dos três porquinhos... brincaram ao eixo, à macaca, e o lobo também não apareceu... provavelmente distraído atrás do Coelho da história da Alice...

E assim se distraía nos sonhos das suas histórias... ela que se deixava levar nos sonhos da sua inocência de vida...