quinta-feira, 31 de maio de 2012

A ABELHA



(do autor)




"A abelha que, voando, freme sobre
A colorida flor, e pousa, quase
Sem diferença dela
À vista que não olha,
Não mudou desde Cecrops. Só quem vive
Uma vida com ser que se conhece
Envelhece, distinto
Da espécie de que vive.
Ele é a mesma que outra que não ela.
Só nós - ó tempo, ó alma, ó vida, ó morte! -
Mortalmente compramos
Ter mais vida que a vida."



Fernando Pessoa - Ricardo Reis - Odes

quarta-feira, 30 de maio de 2012

AMEI-TE E POR TE AMAR


(do autor)

"Amei-te e por te amar
Só a ti eu não via…
Eras o céu e o mar,
Eras a noite e o dia…
Só quando te perdi
É que eu te conheci… 



Quando te tinha diante
Do meu olhar submerso
Não eras minha amante…
Eras o Universo…
Agora que te não tenho,
És só do teu tamanho. 



Estavas-me longe na alma,
Por isso eu não te via…
Presença em mim tão calma,
Que eu a não sentia.
Só quando meu ser te perdeu
Vi que não eras eu. 



Não sei o que eras. Creio
Que o meu modo de olhar,
Meu sentir meu anseio
Meu jeito de pensar…
Eras minha alma, fora
Do Lugar e da Hora… 



Hoje eu busco-te e choro
Por te poder achar
Não sequer te memoro
Como te tive a amar…
Nem foste um sonho meu…
Porque te choro eu? 



Não sei… Perdi-te, e és hoje
Real no [...] real…
Como a hora que foge,
Foges e tudo é igual
A si-próprio e é tão triste
O que vejo que existe. 



Em que és [...] fictício,
Em que tempo parado
Foste o (…) cilício
Que quando em fé fechado
Não sentia e hoje sinto
Que acordo e não me minto… 



[...] tuas mãos, contudo,
Sinto nas minhas mãos,
Nosso olhar fixo e mudo
Quantos momentos vãos
Pra além de nós viveu
Nem nosso, teu ou meu… 



Quantas vezes sentimos
Alma nosso contacto
Quantas vezes seguimos
Pelo caminho abstracto
Que vai entre alma e alma…
Horas de inquieta calma! 



E hoje pergunto em mim
Quem foi que amei, beijei
Com quem perdi o fim
Aos sonhos que sonhei…
Procuro-te e nem vejo
O meu próprio desejo… 



Que foi real em nós?
Que houve em nós de sonho?
De que Nós fomos de que voz
O duplo eco risonho
Que unidade tivemos?
O que foi que perdemos? 



Nós não sonhamos. Eras
Real e eu era real.
Tuas mãos - tão sinceras…
Meu gesto - tão leal…
Tu e eu lado a lado…
Isto… e isto acabado… 



Como houve em nós amor
E deixou de o haver?
Sei que hoje é vaga dor
O que era então prazer…
Mas não sei que passou
Por nós e acordou… 



Amamo-nos deveras?
Amamo-nos ainda?
Se penso vejo que eras
A mesma que és… E finda
Tudo o que foi o amor;
Assim quase sem dor. 



Sem dor… Um pasmo vago
De ter havido amar…
Quase que me embriago
De mal poder pensar…
O que mudou e onde?
O que é que em nós se esconde?



Talvez sintas como eu
E não saibas senti-o…
Ser é ser nosso véu
Amar é encobri-o,
Hoje que te deixei
É que sei que te amei… 



Somos a nossa bruma…
É pra dentro que vemos…
Caem-nos uma a uma
As compreensões que temos
E ficamos no frio
Do Universo vazio… 



Que importa? Se o que foi
Entre nós foi amor,
Se por te amar me dói
Já não te amar, e a dor
Tem um íntimo sentido,
Nada será perdido…



E além de nós, no Agora
Que não nos tem por véus
Viveremos a Hora
Virados para Deus
E n’um (…) mudo
Compreenderemos tudo."


Fernando Pessoa 




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terça-feira, 29 de maio de 2012

CEREJEIRA


(do autor - Londres)

"...
Quando - pela última vez - bateste à porta da casa e te sentaste à mesa
Trazias contigo como sempre alvoroço e início
Tudo se passou em planos e projectos
E ninguém podia pensar em despedida


Mas sempre trouxeste contigo o desconexo
De um viver que nos funda e nos renega
- Poderei procurar o reencontro verso a verso
E buscar - como oferta - a infância antiga


A casa enorme vermelha e desmedida
Com os seus átrios de pasmo e ressonância
O mundo dos adultos nos cercava
E dos jardins subia a transbordância
De rododendros dálias e camélias
De frutos roseirais musgos e tílias


As tílias eram como catedrais
Percorridas por brisas vagabundas
As rosas eram vermelhas e profundas
E o mar quebrava ao longe entre os pinhais


Morangos e muguet e cerejeiras
Enormes ramos batendo nas janelas
Havia o vaguear tardes inteiras
E a mão roçando pelas folhas de heras
Havia o ar brilhante e perfumado
Saturado de apelos e de esperas
Desgarrada era a voz das primaveras


Buscarei como oferta a infância antiga
Que mesmo tão distante e tão perdida
Guarda em si a semente que renasce"

Sophia de Mello Breyner Andresen, in Obra Poética, O nome das Coisas, Carta a Ruben A., Junho de 1976



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segunda-feira, 28 de maio de 2012

COLHER FLORES PELO CAMPO

"Vai alta no céu a lua da Primavera
Penso em ti e dentro de mim estou completo.

Corre pelos vagos campos até mim uma brisa ligeira.
Penso em ti, murmuro o teu nome; e não sou eu: sou feliz.

Amanhã virás, andarás comigo a colher flores pelo campo,
E eu andarei contigo pelos campos ver-te colher flores.
Eu já te vejo amanhã a colher flores comigo pelos campos,
Pois quando vieres amanhã e andares comigo no campo a colher flores,
Isso será uma alegria e uma verdade para mim".

Alberto Caeiro, in "o Pastor Amoroso" - Penso em Ti e Dentro de Mim estou Completo.


(do autor - ao lado do rio Coura)






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domingo, 27 de maio de 2012

MAL ME QUER

De que cor são os malmequeres?

São brancos ou serão amarelos? São da cor dos campos ou da cor da primavera? São da cor da alegria ou, porque naquele prado, por serem todos da mesma cor, são da cor da monotonia?

Perguntava-se sempre, naquela dualidade do mal me quer ou do bem-me-quer, do sim ou do não, do medo ou da paz, da tristeza ou da alegria, da discórdia ou da concórdia, do pavor ou do amor, do um ou do outro...

E, cada dia, sempre que pegava numa flor e, à medida que ia arrancado as pétalas, uma a uma, de cada vez, ia pensando no mal que ele me quer porque me acha sempre gorda ou no bem-me-quer porque sou o amor da sua vida, no mal que ele me quer porque diz sempre que já estou velha ou no bem-me-quer porque é comigo que quer viver o resto das nossas vidas, no mal que ele me quer porque faz a vida a meias e não me dá dinheiro para  nada ou no bem-me-quer porque sempre me ajuda, e nem preciso pedir, no mal que ele me quer porque me trai em cada hora, em cada dia ou no bem-me-quer porque fez da fidelidade a sua vanguardia, no mal que ele me quer porque de mim, todo o tempo, desconfia ou no bem-me-quer porque em mim sempre confia... até que se acabavam as pétalas e ficava na mão, com a flor nua, sem préstimo,  sem vida!

Sem saber nunca como acabava, se na pétala do mal me quer, ou na outra do bem querer!

(do autor - em Argela)

Passava os dias como uma Dona Flor que confundia o espírito do Vadinho com a realidade do dia a dia, que queria um mas sonhava outro, que entrava na loucura do tormento sem saber se devia manter-se fiel ou se cedia...

E hoje que vim aqui, apenas, para saber da cor dos malmequeres!





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sábado, 26 de maio de 2012

PORTO DE LISBOA

Sentou-se a seu lado, na sala, junto à esplanada onde, secretamente, se costumavam encontrar.

As flores que ele lhe trazia, ela deixava-as no colo, suavizando de aromas doces, aqueles momentos... mas sempre, de olhar atento, com medo, de alguém aparecer, como que a querer preservar aqueles momentos de pura intimidade.

Diziam, falavam, prometiam, juravam... trocando beijos abraços e carícias e enlaçavam as mãos em afectos de amor!


(do autor)


Ali, no ponto de encontro habitual, sempre, na mesma mesa, por baixo do emblema do Porto de Lisboa... à beira do Tejo!



"Vem sentar-te comigo Lídia, à beira do rio.
Sossegadamente fitemos o seu curso e aprendamos
Que a vida passa, e não estamos de mãos enlaçadas.
    (Enlacemos as mãos)

Depois pensemos, crianças adultas, que a vida
Passa e não fica, nada deixa e nunca regressa,
Vai para um mar muito longe, para o pé do Fado,
    Mais longe que os deuses.

Desenlacemos as mãos, porque não vale a pena cansarmo-nos.
Quer gozemos, quer não gozemos, passamos como o rio.
Mais vale saber passar silenciosamente
    E sem desassossegos grandes.

Sem amores, nem ódios, nem paixões que levantam a voz,
Nem invejas que dão movimento demais aos olhos,
Nem cuidados, porque se os tivesse o rio sempre correria,
    E sempre iria ter ao mar.

Amemo-nos tranquilamente, pensando que podíamos,
Se quiséssemos, trocar beijos e abraços e carícias,
Mas que mais vale estarmos sentados ao pé um do outro
    Ouvindo correr o rio e vendo-o.

Colhamos flores, pega tu nelas e deixa-as
No colo, e que o seu perfume suavize o momento -
Este momento em que sossegadamente não cremos em nada,
    Pagãos inocentes da decadência.

 Ao menos, se for sombra antes, lembras-te-às de mim depois
Sem que a minha lembrança te arda ou te fira ou te mova,
Porque nunca enlaçamos as mãos, nem nos beijamos
    Nem fomos mais do que crianças.

E se antes do que eu levares o bolo ao barqueiro sombrio,
Eu nada terei que sofrer ao lembrar-me de ti.
Ser-me-às suave à memória lembrando-te assim - à beira-rio,
    Pagã triste e com flores no regaço.

in Ricardo Reis (Fernando Pessoa) - Vem sentar-te comigo, Lídia





 


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sexta-feira, 25 de maio de 2012

MARINHEIRO SEM MAR


Sentia-se confiante, vencedor, triunfante, mas não era mais do que um pobre, um triste, perdido no cais de uma cidade qualquer!

Sem nome, sem mar, sem barco ou destino, por não os ter, vazio de amor, por o não saber!

Julgava-se o dono, duns patrão, doutros poderoso senhor, não passando dum insuportável ditador!

E tanto mais tempo passado, sem nunca se achar...

Sem rumo, decerto, sem rota ou destino, sem sul ou sem norte, em desassossegado desespero percorrendo, num desatino, caminhos escuros, desconfiado, como bandido ou renegado, pedinte faminto, a fugir do medo, a escorregar para a morte,  a última esperança dos vencidos!


(do autor - A dobrar o cabo Horn)



"Longe o marinheiro...
...
... perdido caminha nas ruas obscuras
Ruas da cidade sem piedade

...
Porque ele tem um navio mas sem mastros
...
Porque o destino apagou
O seu nome dos astros
...
Nenhum mar lavará o nojo do seu rosto
...
Em vão chamará pelo vento
...
Ele morrerá sem mar e sem navios
Sem rumos distantes e sem mastros esguios
Morrerá entre paredes cinzentas
Pedaços de braços e restos de cabeças
Boiarão na penumbra das madrugadas lentas."

in Sophia de Mello Breyner - Mar Novo - Marinheiro sem mar.


quinta-feira, 24 de maio de 2012

EU CHAMEI-TE PARA SER

"Eu chamei-te para ser a torre
Que viste um dia branca ao pé do mar.
Chamei-te para me perder nos teus caminhos.
Chamei-te para sonhar o que sonhaste.
Chamei-te para não ser eu:
Pedi-te que apagasses
A torre que eu fui a minha vida os sonhos que sonhei."

Sophia de Mello Breyner Andresen - in Coral - Eu chamei-te para ser


(Do autor - Farol de Santa Maria - Ilha da Culatra)






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quarta-feira, 23 de maio de 2012

RISCOS

Cada vez se correm mais riscos... e podem ser de toda a espécie!

Para se viver, para se amar, para se conquistar ou alcançar, seja o que for... é necessário correr riscos, há que arriscar!

Dizem que, "quem não arrisca não petisca" e, se não petisca, não vive, não vai a lado nenhum, como se fosse alguém que se tivesse deixado ficar na margem da vida, porque não chegou a ter a ousadia de tentar a travessia...

(do autor - riscos de luzes - La Valleta - Malta)
"Há um tempo em que é preciso abandonar as roupas usadas, que já têm a forma do nosso corpo, e esquecer os nossos caminhos, que nos levam sempre aos mesmos lugares.

É o tempo da travessia: e, se não ousarmos fazê-la, teremos ficado, sempre, à margem de nós mesmos."

Fernado Pessoa

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terça-feira, 22 de maio de 2012

FIM DE TARDE

Não há dúvida que o tempo, o clima, melhor dizendo, tem andado muito avariado, ou variável, se raciocinarmos em termos barométricos.

A verdade é que nuns dias faz sol e calor de verão, noutros faz chuva, vento e frio, variando tudo de um dia para o outro, ou misturando-se tudo, até, num mesmo dia.

Ontem, quase que foi um dia assim: esteve de sol, depois apareceram as nuvens, em seguida veio o vento, quase que ameaçou chuva, e tudo isto foi aparecendo no trajecto entre Lisboa e o Algarve onde, lá, para além de haver um sol magnífico, fazia mesmo calor. E, não fora o vento de sudoeste que se fazia sentir por toda a costa, naquele meio e fim da tarde, apetecia, era, um passeio pela praia e sentir o beijo fresco do mar.

Sentado numa esplanada, enquanto esperava pelo encontro aprazado, foi assistindo ao recolher do sol que, pela força do vento e por interferência das nuvens, lá para os lados do fim do mar, se foi esborratando lentamente até desaparecer, num último mergulho, no mar de ouro sem fim que coloria a tarde já morta, daquele lugar.

(do autor - pôr do sol em Vilamoura - Quarteira)

"No ouro sem fim da tarde morta,
Na poeira de ouro sem lugar
Da tarde que me passa à porta
Para não parar,

No silêncio dourado ainda
Dos arvoredos verde fim,
Recordo. Eras antiga e linda
E estás em mim...

Tua memória há sem que houvesses,
Teu gesto, sem que fosses alguém,
Como uma brisa me estremeces
E eu choro um bem...

Perdi-te. Não te tive. A hora
É suave para a minha dor.
Deixa meu ser que rememora
Sentir o amor,

Ainda que amar seja um receio,
Uma lembrança falsa e vã,
E, a noite deste vago anseio
Não tenha manhã."




In Fernando Pessoa - Poesia Ortónima - Poesia lírica - No ouro sem fim da tarde morta 




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segunda-feira, 21 de maio de 2012

UVAS DE MESA

Vão ser, se tudo correr bem!

Costumam ser brancas e doces... Quando estão maduras caem em cachos da latada e quase se não resiste em comê-las, directamente, no local.

Até se imagina o quanto não deve doer, ao cacho, o tirar-se-lhe, um a um, um bago de cada vez e, ainda ali, na sombra que as folhas proporcionam, mastigar e saborear aquela doçura que enche a boca de um paladar peculiar e único.

Sabem a moscatel, a morango, com toques de frutos exóticos... se fossem para fazer vinho ainda se teria que acrescentar, ao rótulo da garrafa, os aromas a chocolate negro e os toques da baunilha vindos do tanino do barril de carvalho francês em que teria estagiado durante seis meses.

Mas não, estas não são para fazer vinho, serão para comer...

Mas antes, ainda vão ter que crescer, serem protegidas do míldio e do oídio, dos insectos, dos pássaros e apanhar muito sol e calor para que possam amadurecer bem até que, finalmente, possam ser colhidas na altura apropriada. 


(do autor)
Hoje com os supermercados, com as uvas embaladas, normalizadas no tamanho, na cor e no peso, nem se imagina o que é a vida de um bago de uva, das vicissitudes porque passa, dos perigos que corre, do trabalho que dá até chegar ali, à prateleira, reluzente e pronto a ser comido.

Ao olhar aquelas uvas, ainda verdes, mas já tão bem definidas, lembrou-se da Fábula da Raposa e das Uvas do Esopo ou do La Fontaine que conta, para os que não sabem ou já esqueceram, a história de uma raposa, danadinha de fome, que ao passar por uma vinha carregada de uvas maduras e prontas a serem colhidas, se preparou para as comer. A verdade é que, apesar de múltiplas tentativas, não as conseguiu alcançar por estarem muito altas e  acabou por se cansar e desistir, não sem antes dizer de si para si, numa espécie de auto convencimento e justificação do seu insucesso: "Estas ainda estão verdes, devem estar azedas e duras, só mesmo os cães as devem conseguir tragar".

Só que, desta vez, a raposa teria razão! Estas ainda estão mesmo verdes!


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domingo, 20 de maio de 2012

ARCO-ÍRIS

Encheu o princípio da manhã de cor!

Um arco-íris de cores fortes, espesso e largo. 

Acordou a cidade que estava, de um lado cheia de sol, no meio cheia de cor, e lá ao fundo cheia de de chuva!

(do autor - Lisboa, hoje, às 7h30m)

"XVII


No meu prato que mistura de Natureza!
As minhas irmãs as plantas,
As companheiras das fontes, as santas
A quem ninguém reza.
E cortam-nas e vêm à nossa mesa
E nos hotéis os hóspedes ruidosos,
que chegam com correias tendo mantas,
Pedem «Salada», descuidosos...
Sem pensar que exigem à Terra-Mãe
A sua frescura e os seus filhos primeiros,
As primeiras verdes palavras que ela tem,
As primeiras cousas vivas e irisantes
Que Noé viu
Quando as águas desceram e o cimo dos montes
Verde e alagado surgiu
E no ar por onde a pomba apareceu
O arco-íris se esbateu..."

Fernando Pessoa (Alberto Caeiro)
In O Guardador de Rebanhos



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sábado, 19 de maio de 2012

ARRENDA-SE

A crise parece que chegou, também, ao reino das aves.

Durante anos habitado por uma família de pardais, este ano foi encontrá-lo vazio, abandonado, sem vestígios de qualquer palha, ou pena, de ninho passado.

Quando se foram embora levaram tudo e deixaram a casa limpa. 

(do autor)

De certeza que este ano já não vai ter habitantes, ou talvez sim!, quem sabe um ninho de vespas, ou talvez venha a servir de abrigo a alguma lagartixa passante?

Pelo sim, pelo não, vou colocar uma etiqueta a anunciar "ARRENDA-SE", a dar sinal que o casinhoto tem dono e que não está abandonado... não vá algum cuco "okupa" tomar conta do espaço e depois ter que chamar a polícia para desocupar o espaço!

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sexta-feira, 18 de maio de 2012

PAPOILA

(do autor)

É a flor do amor e da vida e, ao sê-lo, é, também, a flor do contraste perfeito, porque se a vida se quer longa e o amor eterno ("pelo menos enquanto durar"), a papoila, pelo contrário, é frágil e etérea...

Na verdade dura pouco e é delicada e frágil mas, em contrapartida, é muito antiga, pelo menos é conhecida há 5 mil anos, e está ligada a muitas lendas sobre noites, sobre sonhos e sobre sonos... Daí terem-lhe adicionado o nome de  "Somnífera" ao seu apelido de família "Papaver" e o látex leitoso que ela produz, porque nos põe a dormir nos braços de Morpheu, passou a chamar-se Morfina.

E também está ligada a histórias de morte!

Foi a causadora de famosa Guerra do Ópio, que opôs a China e a Inglaterra, pelos meados do Século XIX, e uma das causas da cedência de Hong Kong ao Império da coroa.

Foi considerada também a flor da morte, porque o seu vermelho era igual ao vermelho do sangue dos soldados mortos e depois enterrados em campos onde as papoilas cresciam em abundância. 

A referência às papoilas vermelhas que crescem sobre as campas dos soldados caídos, resultou num símbolo ligado a essa lembrança. E, de flor da morte, passou a flor da paz. 

John McCrae, um poeta e um físico canadiano, viu morrer, a seu lado, o seu melhor amigo nos campos da Flandres, em Yvres, na Bélgica, em 2 de Maio de 1915, durante a I Guerra Mundial. Ele próprio o enterrou e notou, passado pouco tempo, que as papoilas cresciam rapidamente à volta das campas dos soldados mortos. Foi nessa altura que compôs o poema...

"Nos campos da Flandres - In Flanders fields"


In Flanders fields the poppies blow
Between the crosses, row on row,
That mark our place; and in the sky
The larks, still bravely singing, fly
Scarce heard amid the guns below.


We are the Dead. Short days ago
We lived, felt dawn, saw sunset glow,
Loved and were loved, and now we lie
In Flanders fields.


Take up our quarrel with the foe:
To you from failing hands we throw
The torch; be yours to hold it high.
If ye break faith with us who die
We shall not sleep, though poppies grow,
In Flanders fields.

(do autor - Campos do Porto da Espada - Serra de São Mamede)

Ontem foi o Dia da Espiga e, se não fui ao campo colhê-las,  captei as espigas, os malmequeres, o alecrim e as papoilas neste campo raso no sopé da Serra de São Mamede.

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quinta-feira, 17 de maio de 2012

COAXARES

Fora atrás do coaxar que parecia vir do tanque dos nenúfares...

Aliás, não era um único "raque-raque", mas uma polifonia deles, num caos de sons feitos uma harmonia desconcertante, cheia de agitações, de entusiasmos, de coaxares daqui, de "raques" distantes, de raques direitos, de coaxares esquerdos e, mal ele se mexia, mal avançava um passo de aproximação, mal pisava um ramo seco caído no chão, a orquestra, como que sob a batuta de um maestro universal, remetia-se a um silêncio de expectativa, num misto de tensão e curiosidade, esperando, de novo, a ordem do maestro, para todos aqueles raqueares voltarem a encher, de vida e de ruído, aquele lugar.

(do autor - Rana esculenta em pose nupcial)

Os machos, ao fazerem crescer as bolsas de ressonância de cada lado da cabeça exibem-nas à fêmea da sua eleição, que vai assistindo, calada, àquele espectáculo dos balões coloridos, que vão enchendo e esvaziando, ao mesmo tempo que criam sons que a atraem de forma irredutível...

Também ele se deixou ficar por ali, numa imobilidade expectante, assistindo, calado, àquele rito nupcial, àquele cerimonial de primavera de quase encanto...

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quarta-feira, 16 de maio de 2012

MACARONI

Macaroni é uma das muitas espécies de pasta italiana, uma das coisas boas que os italianos inventaram e espalharam pelo mundo, muito provavelmente através das viagens e percursos de Marco Polo.

Mas Macaroni é, também, o nome de uma espécie de pinguim. É um pinguim caracterizado por ter uma crista de penas amarelas, a cabeça e o pescoço pretos, a íris bem vermelha e o bico grande e de cor laranja-acastanhado.


(Pinguim Macaroni)

Foram os marinheiros ingleses que deram o nome a este tipo de pinguim devido à sua crista ornamentada, pois Macaroni era um termo que designava um estilo de Inglaterra, dos séculos XVIII-XIX, marcado pela ornamentação e exibicionismo excessivos. Quem adoptasse este estilo era chamado de Macaroni!, como está bem recordado na letra da música "Yankee Doodle":

      "Yankee Doodle went to town
        A-riding on a pony,
        Stuck a feather in his cap
        And called it macaroni
        ..."

Yankee Doodle - George P. Morris - (música americana com origem na Guerra dos Sete Anos e música oficial do estado do Connecticut).

(do autor - Pinguin Macaroni no meio de uma colónia de Chinstraps)
Mas parece que o nome também pode vir de um corpo de elite do exército italiano, I Bersaglieri (atirador, artilheiro), uma unidade de infantaria de alta mobilidade, caracterizada por não utilizar a marcha militar nos seus percursos, mas a corrida cadenciada. Outra característica deste corpo de elite, criado em 1836, é o seu famoso chapéu de abas muito largas, decorado com penas negras de faisão. Penacho, esse, que também é usado nos capacetes de combate.


(Google image - capacete Bersaglieri)

E, como o macarrão e as pastas estão associadas à Itália e aos italianos, e ao seu aparente exibicionismo, aqui bem expresso no penacho de plumas de faisão dos chapéus e capacetes dos Borsiglieri, foi fácil chegar-se à expressão Macaroni.

Quando se deparou com aquele Galo Garnisé Holandês de Poupa - era assim que estava etiquetado à porta do galinheiro - veio-lhe à lembrança o tal Pinguim Macaroni, que descortinara no meio de uma colónia de outra espécie de pinguins, os Chinstrap, em aparente integração de grupo.


(do autor - Galo Garnizé Holandês de Poupa)


E foi assim que aquele galo, até então sem nome, se passou a chamar, a partir daquele momento, de Macaroni! É que até as penas da cauda fazem lembrar as do capacete dos Borsiglieri!



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terça-feira, 15 de maio de 2012

ENCONTROS

Parecia um encontro de bonecos de palha, uma reunião sindical de protesto contra as horas, os dias, as semanas, os meses de trabalho em que ficavam, imóveis, seja no meio do milheiral, ou do campo de searas, ou no meio da horta ou do pomar, vestidos de forma ridícula, com roupa velha e esburacada, de chapéu na cabeça e de braços abertos, como se fossem um Cristo travestido de palhaço.

E a verdade é que com coisas sérias e sagradas não se brinca e, por esse e por outros motivos, resolveram fazer uma RGE - Reunião Geral de Espantalhos.

Para que o acontecimento tivesse mais impacto, fosse mais visível e mais mediático resolveram despir as roupas usadas e gastas, tirar os chapéus de aba larga a desmancharem-se de velhos e sair da cruz onde os plantaram. 

E foi, naquela leira não cultivada, que se reuniram, criaram grupos de trabalho, discutiram as ideias, apresentaram propostas, que devem ter posto a votação, deixando-se, depois, ficar em conversas de silêncios, em movimentações estáticas, num convívio de aparências...


(do autor - medas no Minho)



... e ainda lá estariam, não fora a máquina de enfardar, que entretanto chegou, e que pegou naquelas medas de palha, uma a uma, e as engoliu na voragem do seu mecanismo transformando-as em vulgares fardos de palha!


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segunda-feira, 14 de maio de 2012

PAVÕES

"Já não há caudas de pavões tôdas olhos nos jardins de outrora..."

Fernando Pessoa - in Hora Absurda


A verdade é que, cada vez, há mais, por aí!

Todos estufados, emplumados, coloridos, gritantes, chamativos, bem-falantes, extravagantes,  espampanantes, exibicionistas, vaidosos...

Passeiam-se ufanos, entufados, arrogantes, gabarolas, pedantes, superiores, altivos, amaneirados, expostos...

O cérebro pouco mais tem que o tamanho de um grão de ervilha e o peso não passa do de uma pena, mas julgam-se importantes, imprescindíveis, únicos, têm a mania que sabem mandar e são especialistas em menosprezar e escarnecer os outros...

Gostam de se olhar ao espelho... "espelho, espelho meu há alguém mais belo e mais esperto do que eu?".

(do autor)

"Pavões sem penas? Nunca vi!", costumava dizer o Professor Jorge da Silva Horta nas suas aulas de Anatomia Patológica.

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domingo, 13 de maio de 2012

ALFAIATES

Há quem lhes chame patinadores ou insectos Jesus.  E não é preciso ir ao Lago de Tiberíades para os ver a caminhar sobre as águas.

Assim que chega o calor, que os dias de sol se tornam mais consistentes, a superfície dos rios, dos lagos, das charcas, ou mesmo, de um tanque de pequenas dimensões começa a encher-se destes insectos elegantes, de patas compridas, que caminham e correm sobre a superfície das águas.

E parece mesmo que, à medida que deslizam sobre o manto das águas, vão tecendo, com destreza e rapidez, panos de renda tão delicados e frágeis que, no mesmo instante em que são tecidos, se  dissolvem na própria água em que são fabricados.

(do autor - Alfaiates no rio Coura)
E passam horas, dias, semanas, eles, os alfaiates, e elas, as costureiras, nesse vai e vem de teceduras imaginárias, ora quietos a rematar um ponto, ora correndo em ziguezagues, sem nexo na aparência, cumprindo a sua missão, numa tarefa imensa que lhes ocupa toda a sua existência.

Devem sentir uma inveja enorme das pedras e dos fios de água por estes, numa espécie cumplicidade íntima, fabricarem os limos e os musgos que vão persistindo, ora mergulhados nas águas ou recobrindo as pedras, ao contrário das rendas, por eles tecidas, que apenas existem enquanto dura a persistência de um olhar...

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sábado, 12 de maio de 2012

DO OUTRO LADO

Quando as tardes se alongavam, quando o tempo lhe sobrava, quando os sentires o exigiam, quando os pensares lhe pediam, ou quando apenas por lhe apetecer, era para ali que sempre ia.

E, mal lá chegava, ia sentar-se no banco de pedra, o mesmo banco em que a avó, quantas vezes se sentara, abandonando o cansaço da caminhada e apoiando o queixo no cajado de faia que a tinha ajudado a compensar as irregularidades do terreno, na subida do cabeço.

Naquela solidão escolhida, no silêncio que a natureza lhe consentia, ali ficava, em paz com o sítio, a olhar, distante, o recorte da Serra e o arvoredo denso das encostas e, mais perto, do outro lado da ribeira, a Casa da Máquina, pintada de um ocre já bastante desmaiado pelo tempo.

Ficava ali a olhar, a pensar, a sonhar ou, simplesmente, a esperar que o sol, atrás de si, se começasse a despedir, enquanto ia apreciando as mudanças das tonalidades, dos coloridos e das sombras que a luz, quase tangente ao horizonte, ia imprimindo na paisagem.

E só quando sol, sob a forma de um foco luminoso reflectido do vidro de uma das janelas da Casa da Máquina, do outro lado da encosta, lhe vinha beijar a face, numa despedida quase cúmplice, num até outro dia, é que se levantava daquele banco de pedra e regressava, nos seus silêncios e nos seus pensares, acompanhada do seu cajado de faia, à casa que, àquela hora se enchia dos barulhos da família reunida à volta da mesa para o jantar...  


(do autor - Casal da Comenda)


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sexta-feira, 11 de maio de 2012

TIQUELITÍ, TIQUELITÉ

"... Tiquelití, tiquelité, quantos dedos estão em pé?"

Era assim que começava a lenga-lenga.

Sempre que a Laurita Casanova Alves, uma amiga da família, lá ia a casa, e em particular se um de nós, miúdos, estava doente, acamado, ela não perdia tempo: sentava-se à beira da cama, mandava-nos virar de bruços e, tamborilando os dedos da mão direita nas nossas costas, começava a lenga-lenga que era, ao mesmo tempo, uma adivinha:

"Tiquelití, tiquelité quantos dedos estão em pé?"

Nesse momento parava o tamborilar, levantava os dedos que entendia e nós respondíamos ao calhar... "três"!

E ela respondia: "Se dissesses quatro não perdias nem ganhavas, tiquelití, tiquelité, quantos dedos estão em pé?"

E, fôssemos dizendo o número que disséssemos, ela respondia, invariavelmente, com outro número, mantendo o mesmo tipo de resposta: "Se dissesses dois (ou um, ou cinco, ou o que calhasse) não perdias nem ganhavas, tiquelití, tiquelité, quantos dedos estão em pé?"

Quando ela entendia que era altura de terminar, lá fazia acertar o número dela com o nosso número e acabava a brincadeira, mas a sua voz, bem timbrada, continuava a ecoar nos nossos ouvidos...

 "Tiquelití, tiquelité..."


(Dedos, escultura em acrílico (?) - autoria de Pietrina - Rio de Janeiro)

Foram estes dedos da Pietrina que trouxeram à memória estas recordações de infância...

"Se dissesses cinco não perdias nem ganhavas, tiquelití, tiquelité, quantos dedos estão em pé?" 

Será que acertei?


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quinta-feira, 10 de maio de 2012

IMPRESSÕES

Ficaram gravadas na parede branca.

Mãos de crianças, de uma Escola, a perpetuar a visita, a deixar, em cores fortes e persistentes, a impressão de cada um, da Marta, da Fernanda, da Maria, da Herondina, da Odelta ou da Raquel, mas também do João, do Flávio, do Paulo ou do Gonçalo, no muro da escada de um porto de partida...

(do autor - Porto da Horta - Faial)


Da partida de uma vida de adolescente para uma de adulto,  da quietude de um lugar para o bulício do mundo, do aprender de uma escola para o aprender da vida...

Cada um, na impressão da sua mão, deixou, ali gravados, os seus sentires, os seus sonhos, os seus ideais, os seus quereres, como se deixassem o futuro antecipadamente impresso e gravado na brancura daquela parede... Todas parecidas, mas única, cada impressão, cada mão, a individualizar a pessoa no colectivo daquela mancha de cores!

"...

Inútil seguir vizinhos,
querer ser depois ou ser antes.
Cada um é os seus caminhos!
Onde Sancho vê moinhos,
D. Quixote vê gigantes.

Vê moinhos? São moinhos!
Vê gigantes? São gigantes!"

António Gedeão, in Movimento Perpétuo.

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quarta-feira, 9 de maio de 2012

PREGUIÇA

A manhã pedia cama, o dia não tinha nada para fazer e, àquela hora, de sol acordado e garantido, os pés podiam ficar juntos mais um tempo, num diálogo sossegado e mole, numa conversa de gestos e toques, num entender feito de cumplicidade e ternura...

(reprodução de um quadro - Pés, de Pietrina)


... numa preguiça macia e doce!

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terça-feira, 8 de maio de 2012

FLORES




(do autor - Caminha, logo pela manhã futura)

"Era preciso agradecer às flores
Terem guardado em si,
Límpida e pura.
Aquela promessa antiga
Duma manhã futura."

Sophia de Mello Breyner Andresen - Flores

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segunda-feira, 7 de maio de 2012

COÇA-ME AS COSTAS

Era isso que ela lhe dizia todas as noites: Coça-me as costas!

E ele, com imenso carinho, com a mesma ternura do primeiro dia, melhor, da primeira noite, lá lhe começava a coçar as costas, de início guiado pela voz dela que lhe ia dizendo "mais abaixo", ou "mais acima", ou "para esse lado"... e, depois, com o culminar do "coça aí, com força!".

Com os anos, com o conhecimento que já tinha dos sítios exatos onde, e da intensidade da comichão dela, o coçar quase se processava de forma automática: o sítio onde começava, as zonas onde o coçar deveria ser mais intenso ou mais prolongado até que ela, satisfeita, lhe pedia o abraço terno.

E, enquanto a coçava, iam falando deles, do muito amor que sentiam um pelo outro mas, também, da vida, do trabalho, do amanhã...

Era assim todas as noites, como um ritual preparatório de uma noite que precisasse de ser bem dormida, ou de uma noite que pedisse muito amor...


(do autor - Foz do rio Minho)
Agora, desde que ela partiu - maldita doença! - as noites e os momentos de coçar transformaram-se em noites de saudade, em noites de monólogos, numa solidão indesejada...

Mas os dedos, esses não perderam o jeito de coçar e, hoje, é a Dourada (aquele hábito de pescador de pôr o nome de peixes aos bichos lá da casa!) que vai ronronando à medida que ele lhe vai afagando o dorso, como se ela lhe comunicasse e ele entendesse os sítios que lhe dão mais satisfação e prazer...

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domingo, 6 de maio de 2012

LUA CHEIA

Ontem nasceu assim, cheia, redonda, bem amarela, manchada, esplendorosa, poética, cativante, chamativa...

(do autor - a Lua, ontem, no seu esplendor de lua cheia)

É o fascínio da lua!

"Os antigos diriam que o luar é branco, ou é de prata. Mas a brancura falsa do luar é de muitas cores. Se me erguesse da cama, e visse por detrás dos vidros frios, sei bem que, no alto ar isolado, o luar é de branco-cinzento-azulado de amarelo esbatido; que, sobre os telhados vários, em desequilíbrios de negrume de uns para outros, ora doura de branco-preto os prédios submissos, ora alaga de uma cor sem cor o encarnado-castanho das telhas altas. No fundo da rua, abismo plácido, onde as pedras nunca se arredondam irregularmente, não tem cor salvo um azul que vem talvez do cinzento das pedras. Ao fundo do horizonte será quase azul-escuro, diferente do azul-negro do céu ao fundo. Nas janelas onde bate, é de amarelo-negro,"

Bernardo Soares / Fernando Pessoa, Livro do Desassossego.

sábado, 5 de maio de 2012

CANTAR DE GALO

Sempre se sentiu importante, como se dominasse o mundo do alto da haste de ferro, bem por cima da chaminé.

Colocaram-no lá há muitos anos, não sabe quantos, mas atravessou duas guerras, as três gerações de famílias que já passaram por aquela casa, e lá continua, firme, bem no alto.

Não canta, apenas sabe olhar para o sítio de onde vem o vento.

O corpo é negro, da cor da tinta preta fosca com que o pintaram da última vez, mas a cauda começa descascar-se e a ganhar tons de ferrugem provocadas pelas chuvas, com uma das penas calcinada pela força de um raio, que quase o ia desfazendo, numa tarde de trovoada seca de um Setembro distante.

Houve, também, um dia em que, quase, ia morrendo... A bala de uma carabina, numa disputa de tiro ao alvo, perfurou-o mesmo no meio do corpo... Um pouco mais à frente e tinha-lhe atingido o coração... Aí, seria morte certa!

(do autor - Casal - Travancinha)
Quantas vezes, nas manhãs de frio de inverno e nas longas tardes de solidão, se imaginou um galo de verdade, a viver na capoeira lá de baixo, com o harém de galinhas, aconchegando o frio no conforto da palha, protegido da chuva pela cobertura do telhado de zinco, e seguro pela rede que impede a entrada da raposa que muitas vezes, à noite, vem rondar o galinheiro. Nessas alturas, cantava de galo, acordava o dia, cobria qualquer franga que lhe aparecesse pela frente e gostava de inchar as penas, como fazia o perú, dando ares de rei e senhor daquele lugar. Mas era o seu cantar, o seu cantar de galo, que era único, inconfundível!

Até que chegou o dia em que meteram, na capoeira, um galo novo para substituir o velho. E nem sequer lhe deram tempo para disputas, nessa mesma tarde golpearam-lhe o pescoço e serviram-no ao jantar, dentro de uma púcara de barro.

Nunca mais se imaginou a cantar de galo!




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sexta-feira, 4 de maio de 2012

PEDISTE FLORES

Aqui estão elas, cheias de vida, cheias de cor, a pintalgar tudo o que é espaço, tudo o que é recanto, tudo o que é lugar...


Pediste flores e olha bem, que cada pinta, cada mancha de cor é, apenas e tão só, uma flor e são muitas, a estenderem-se até onde se estende o olhar, e cada uma, olha bem, parece estar a sorrir para ti...


Pediste flores e espero que gostes, e que te tornem alegre o dia e, na solidão da noite, te façam a melhor companhia...


Pediste flores e deixo-tas, soltas, com o ramo por fazer, para que o possas compor como mais te der prazer, podes ir juntando por cores, ajeitando as flores, compondo à tua maneira ou, então, se achares melhor, coloca-as todas numa floreira... 


Pediste flores e, para a semana, quem sabe não te trarei mais? Melhor seria se, em vez destas, de fotografia, te trouxesse das verdadeiras, que não sejam como estas, virtuais, mas sejam mesmo, flores de verdade, flores reais...

(todas as fotos do autor - Alto Alentejo)



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