No meio das prendas todas, com papéis de embrulhos feitos de Pais-Natal, de estrelinhas, ou flocos de neve e fitas de embrulho, douradas e vermelhas com enormes e sofisticados laçarotes, estava uma prenda embrulhada em papel pardo e amarrada com guita de cordel, fina, azulada, sem laçarote de remate, mas um simples laço, feito ao modo do dos sapatos. Uma prenda que, no meio daquela profusão de cor e espalhafato, sobressaía pela singeleza e pobreza de arranjo.
Esta não tinha etiqueta, não tinha nome a acompanhar, apenas estava ali, sóbria no aspecto, mas a sobressair pelo inesperado e quase insólito.
A cor azul do cordel quereria significar que, talvez, fosse um presente para rapazes. Apesar de ainda ser assim - cor-de-rosa para as meninas e azul para os rapazes - actualmente, essa separação sexual das cores já não tem o mesmo significado de antigamente.
Mas, voltando às prendas, poder-se-ia imaginar o que estivesse dentro daquele conjunto de embrulhos dispostos à volta da árvore de Natal: para as crianças as bonecas e casinhas de brincar, os carrinhos de comando e os legos para montar, os CD e DVD das séries infantis do Noddi ou do Walt Dysney, os jogos de computador ou das Play-Station... No caso dos adultos, seriam livros, perfumes, casacos de malha, camisas, luvas, cachecóis, CD de música, objectos com alguma utilidade, do porta-chaves ao saca-rolhas, do paninho de renda ao frasco de aromas, e outras coisas que dependessem da imaginação de quem oferece ou das necessidades de cada um.
Depois da febre do distribuir as prendas, do desembrulhar apressado e rasgado dos papéis, do abrir das caixas com os brinquedos, do ver o que era e abrir o próximo, do todos baterem palmas à admiração das crianças pela surpresa de cada brinquedo, da abertura mais tranquila das prendas, no caso dos mais velhos, ninguém se deu conta que aquele presente, o tal do papel pardo e do cordel azulado ficou esquecido, afogado por montanhas de papel colorido e rasgado e de fitas vermelhas e douradas ainda de laçarotes armados, algumas.
Foi o avô velho, mas lúcido, que, quase no final desta festa dos presentes, chamou a atenção para o esquecido embrulho e pediu ao neto que lhe estava mais próximo que lho trouxesse.
E foi desembrulhando, com calma, aquele presente: primeiro tirou o cordel azulado que enrolou com cuidado e colocou em cima da mesa, depois foi o papel pardo que, em vez de o rasgar, foi abrindo delicadamente e o dobrou pelos vincos que já tinha, e o tal presente começou, tanto no meio da pequenada como dos adultos, a ganhar uma curiosidade inesperada. É que ainda vinha embrulhado, para que ficasse mais protegido, não naquele filme de plástico com bolhas que agora tanto se usa, mas, simplesmente, em papel de jornal.
Até que, como o pinto, o presente saiu do "ovo"!
E saiu uma camionete de lata, como podia ter saído um carrinho, uma moto, um barco, um comboio, um boneco articulado, ou um carrossel...
Causou surpresa, admiração e espanto: na pequenada pelo efeito de inovação, por que era diferente dos que conheciam, sem luzes a apagar e a acender, sem baterias nem botões prontos a activarem sistemas electrónicos, de lata e não de plástico; nos adultos pela nostalgia dos seus tempos de criança... um dos presentes até disse ter um igual e que deveria ainda estar guardado no baú dos brinquedos velhos.
Antigamente eram assim os brinquedos, de lata, pintados à mão com cores garridas, com as rodas, também de lata, a girarem de forma oscilante. Alguns tinham um motor de corda, com a chave em separado. Faziam as delícias da pequenada, eram simples de fabricar, quase de forma artesanal, não exigindo grande tecnologia e, quando não estavam a ser usados na brincadeira ainda poderiam dar, como no caso desta camionete, para guardar os berlindes na caixa aberta.
Fora o avô quem pusera aquele presente, daquela maneira embrulhado, no meio dos outros.
Uma maneira de lembrar que, nesta civilização de consumismo exagerado, de alta tecnologia que nos pretende facilitar tudo, neste tempo do usar e deitar fora, neste tempo e modo de viver que nos levou à falência de um sistema, é altura de recuar um pouco nos conceitos de vida, é tempo de voltar às coisas simples, é tempo reencontrar as pessoas reunidas à volta de interesses comuns, é tempo de saber dar as mãos e olhar os outros.
Tempo de voltar ao verdadeiro espírito de Natal!