Tive um tio-bisavô que viveu em Trancoso, terra de onde era também natural. Conhecido por Costa Lima, Francisco de primeiro nome.
Começou a vida como serralheiro, foi para África onde trabalhou muito, fez fortuna, e regressou às suas origens.
Homem de bens e de posses, cedo se tornou um benemérito daquela vila arranjando dinheiro para reconstruir duas Igrejas, fazer o Hospital e foi o principal responsável pela electrificação de Trancoso.
Daí a ser o Comendador Costa Lima foi um instante.
Devia ser um bom coração. Mas com mau feitio, dizem! Ia aos arames com facilidade, por tudo e por nada se zangava e, se fosse preciso, puxava da sua pistola pronto a dar um ou dois tiros para o ar, só para assustar.
Estamos no início do século XX, altura em que os veículos a motor começam a surgir por todo o lado, como cogumelos. Os construtores eram às dezenas, principalmente franceses, ingleses e alemães, quase todos apresentando um chassis e um motor, sendo depois escolhida a carroçaria, habitualmente em madeira, e feita ao gosto ou às necessidades do comprador.
Trancoso não possuía nenhuma destas quase carroças, sem animal a puxar.
Como este meu tio tinha muitos negócios em Lisboa e tinha de se deslocar com alguma frequência à capital achou, por bem, que deveria comprar um carro que lhe desse a autonomia suficiente para as suas idas e vindas, sem depender da mala-posta, das mudas de cavalos e das estalagens ou hospedarias de estrada, para além do perigo dos assaltos naqueles trajectos através dos pinhais da Beira Alta e da zona de Leiria.
Homem de decisões rápidas, mas acertadas, se assim o pensou, melhor o fez e tratou de encomendar uma dessas viaturas sem cavalos.
Depois de muitos assédios por parte dos representantes das diversas marcas, decidiu-se pelo DARRACQ, modelo de 1903/1904, de caixa aberta e 4/6 lugares, conforme fossem mais à larga ou mais apertados, nos dois bancos corridos que os catálogos, profusamente ilustrados, mostravam.
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(DARRACQ DE 1903 - FOTO DA NET) |
Feita encomenda era preciso esperar uns meses até o carro ser fabricado e despachado, por via marítima, desde Suresnes, nos arredores de Paris.
Finalmente o anúncio da chegada do vapor a Lisboa e a ida do Costa Lima e de mais dois amigos, um deles o Juiz da Comarca, para irem buscar o veículo e fazerem o trajecto de Lisboa a Trancoso e a promessa de uma entrada triunfal na vila, com banda e fogo de artifício.
A viagem foi acidentada pois, perto de Tábua, bem depois de Coimbra, o veículo caiu por uma ribanceira, felizmente sem qualquer ferimento importante para os ocupantes, e teve de voltar a Coimbra para ser reparado. Um atraso de mais umas quantas semanas! Até que, finalmente, o carro entra em Trancoso. Não a rugir, ou a "relinchar" a força dos cavalos/vapor, mas placidamente puxado por uma parelha de muares, uma vez que o motor tinha feito uma birra e resolveu não trabalhar, "malgré" as inúmeras tentativas para o pôr a funcionar.
Não foi uma recepção em glória, mas foi gloriosa, pois a banda e o fogo de artifício fizeram esquecer, um pouco, aquele percalço mecânico.
E por lá andou com o seu carro, com aqueles barulhos de motor, a tossir e a rugir, e mais o da buzina de trompete accionada manualmente a fazer um barulho de corneta de cana rachada, afugentando tudo o que fosse vivo da sua frente.
Parece não haver dúvida que o motor, tal como o dono, também tinha mau feitio: era muito temperamental! De vez em quando resolvia parar e não havia manivela, empurrão ou desembraiar da caixa de velocidades que o fizessem pôr, de novo, em rotação.
Um dia, não sei em que altura do ano, na ocasião de mais um regresso a Trancoso, ao fazer uma das curvas apertadas e a subir que dão acesso à vila, mesmo no meio duma delas, o motor resolve parar. De novo as manobras costumeiras: a manivela a girar, empurrão do povo que, entretanto se juntou, mas nada. Silêncio de morte!
Foi um duelo de temperamentos, de teimosias, de um lado o motor que se quedou e se recusou a trabalhar, ficando no seu silêncio desafiador, do outro o meu tio Costa Lima a irritar-se, a perder as estribeiras, até que chegou ao ponto de sacar da pistola e descarregar a sua ira e frustração naquele motor tecnicamente morto. Um, dois, três, quatro tiros e nada. A única centelha de vida era a do ricochete das balas que faiscavam ao bater no ferro do bloco do motor. Ainda tinha duas balas no tambor do revólver.
Guardava sempre a última para uma ocasião mais desesperada, por isso, apenas lhe restava mais um tiro, de raiva, de ira, de destempero. Pum! E, subitamente... o rom-rom do motor a fazer-se anunciar, sem tossidelas, sem rugires, sem altercações... como um gato manso, obediente, a ronronar, e o carro subiu o resto da rampa de curvas e contra curvas que dão acesso a Trancoso, sem hesitações, como se fosse empurrado por uma força invisível. Parece que a bala acertou na "mouche" e terá feito deslocar alguma peça que estava fora do lugar, não sei. O que sei é que o caso foi muito comentado, muito falado até bastante fora dos limites do Concelho, quase virando uma lenda...
E a verdade é que, ainda hoje, passados mais de cem anos, aquela curva (que vai desaparecer dentro em breve, por construção de uma nova estrada), aquela curva, dizia, ainda é conhecida pelo nome da "CURVA DO COSTA LIMA".
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